Bons líderes conhecem seus próprios limites. Eles não tentam fazer tudo sozinhos. Eles constroem equipes. Eles criam espaço para pessoas fortes onde elas são fracas. Eles entendem a importância dos freios e contrapesos e da separação de poderes. Eles se cercam de pessoas que são diferentes deles. Eles entendem o perigo de concentrar todo o poder em um único indivíduo. Mas aprender tem seus limites, saber que há coisas que você não pode fazer - mesmo coisas que você não pode ser - pode ser uma experiência dolorosa. Às vezes envolve passar por uma crise emocional.
A Torá contém quatro relatos
fascinantes de tais momentos. O que os une não são palavras, mas música. Desde
o início da história judaica, a Torá era cantada, não apenas lida. Moisés no
final de sua vida chama a Torá de uma canção.[1] Diferentes tradições cresceram
em Israel e na Babilônia, e por volta do século X em diante, o canto começou a
ser sistematizado na forma de notações musicais conhecidas como Ta'amei haMikra,
sinais de cantilação, concebidos pelos massoretas (guardiões dos textos
sagrados do judaísmo).
Uma nota muito rara, conhecida
como shalshelet(corrente), aparece na Torá quatro vezes apenas. Cada vez
é um sinal de crise existencial. Três exemplos estão no livro de Gênesis. A
quarta está em nossa parashá. Como veremos, o quarto é sobre liderança. Em um
sentido amplo, os outros três também.
O primeiro exemplo ocorre na
história de Ló. Depois que Ló se separou de seu tio Abraão, ele se estabeleceu
em Sodoma. Lá ele foi assimilado pela população local. Suas filhas se casaram
com homens locais. Ele mesmo sentou-se no portão da cidade, um sinal de que
havia sido feito juiz. Então, dois visitantes vêm dizer-lhe para ir embora,
pois Elohim está prestes a destruir a cidade. Ainda assim, Ló hesita, e acima
da palavra para “hesita” - vayitmamah - está um shalshelet.
(Gen. 19:16).
Ló está dividido, em conflito.
Ele sente que os visitantes estão certos. A cidade está realmente prestes a ser
destruída. Mas ele investiu todo o seu futuro na nova identidade que vem
construindo para si e para suas filhas. Os anjos então o levam à força para
fora da cidade para um lugar seguro - se eles não tivessem feito isso, ele
teria demorado até que fosse tarde demais.
O segundo shalshelet
ocorre quando Abraão pede a seu servo - tradicionalmente identificado como
Eliezer - para encontrar uma esposa para seu filho Isaque. Os comentaristas
sugerem que Eliezer sentiu uma profunda ambivalência sobre sua missão. Se
Isaque não se casasse e não tivesse filhos, a propriedade de Abraão acabaria
por passar para Eliezer ou seus descendentes. Abraão já havia dito isso antes
de Isaque nascer: “Soberano Senhor, o que me podes dar visto que continuo sem
filhos e quem vai herdar a minha propriedade é Eliezer de Damasco?” (Gen. 15:2).
Se Eliezer tivesse sucesso em sua
missão, trazendo de volta uma esposa para Isaque, e se o casal tivesse filhos,
então suas chances de um dia adquirir a riqueza de Abraão desapareceriam
completamente. Dois instintos guerreavam dentro dele: lealdade a Abraão e
ambição pessoal. O versículo declara:
E disse: Ó Senhor,
Elohim de meu senhor Abraão, dá-me hoje bom encontro, e faze beneficência ao
meu senhor Abraão! (Gênesis 24:12)
A lealdade de Eliezer a Abraão
venceu, mas não sem uma grande luta. Daí o shalshelet.
O terceiro shalshalet nos
leva ao Egito e à vida de José. Vendido por seus irmãos como escravo, ele agora
trabalha na casa de um eminente egípcio, Potifar. Deixado sozinho em casa com a
esposa de seu patrão, ele se torna o objeto de seu desejo. Ele é bonito. Ela
quer que ele durma com ela. Ele se recusa. Fazer tal coisa, diz ele, seria
trair seu mestre, o marido dela. Seria um pecado contra Elohim.
No entanto, sobre "ele
recusou" é um shalshelet, (Gênesis 39:8) indicando - como
algumas fontes rabínicas e comentários medievais sugerem - que ele fez isso à
custa de um esforço considerável.[2] Ele quase sucumbiu. Este foi mais do que o
conflito usual entre pecado e tentação. Foi um conflito de identidade.
Lembre-se de que José estava morando em uma terra nova e estranha. Seus irmãos
o rejeitaram. Eles deixaram claro que não o queriam como parte de sua família.
Por que então ele não deveria, no Egito, fazer como os egípcios fazem? Por que
não ceder à esposa de seu mestre se era isso que ela queria? A pergunta para
José não era apenas: "Isso está certo?" mas também: "Sou
egípcio ou hebreu?"
Todos os três episódios são sobre
conflito interno e todos os três são sobre identidade. Há momentos em que cada
um de nós tem que decidir, não apenas "O que devo fazer?" mas
"Que tipo de pessoa devo ser?" Isso é particularmente fatídico
no caso de um líder, o que nos leva ao episódio quatro, desta vez com Moisés no
papel central.
Após o pecado do bezerro de ouro,
Moisés, por ordem de Elohim instruiu os israelitas a construir um santuário que
seria, de fato, um lar simbólico permanente para Ele no meio do povo. A essa
altura, o trabalho está concluído e tudo o que resta é Moisés empossar seu
irmão Aarão e os filhos de Aarão. Ele veste Aarão com as vestimentas especiais
do Sumo Sacerdote, unge-o com óleo e realiza os vários sacrifícios apropriados
para a ocasião. Sobre a palavra vayishchat, "e ele abateu [o
carneiro sacrificial]" (Lev. 8:23) há um shalshelet. Agora sabemos
que isso significa que houve uma luta interna na mente de Moisés. Mas o que
foi? Não há o menor sinal no texto que sugira que ele estava em crise.
No entanto, um momento de
reflexão deixa claro sobre o que era a turbulência interna de Moisés. Até agora
ele liderou o povo israelita. Aarão o ajudara, acompanhando-o em suas missões
ao Faraó, atuando como seu porta-voz, assessor e segundo em comando. Agora,
entretanto, Aarão estava prestes a assumir um novo papel de liderança por conta
própria. Ele não estaria mais um passo atrás de Moisés. Ele faria o que o
próprio Moisés não pôde. Ele presidiria as ofertas diárias no Tabernáculo. Ele presidiria
o avodah, o serviço sagrado dos israelitas a Elohim. Uma vez por ano, no Yom
Kippur, ele realizava o serviço que asseguraria a expiação de seus pecados
pelo povo. Não mais sob a sombra de Moisés, Aarão estava prestes a se tornar o
único tipo de líder que Moisés não estava destinado a ser: um Sumo Sacerdote.
O Talmud adiciona outra dimensão à pungência do momento. Na Sarça Ardente, Moisés resistiu repetidamente ao chamado de Elohim para liderar o povo. Por fim, Elohim disse a ele que Aarão iria com ele, ajudando-o a falar (Ex. 4:14-16). O Talmud diz que, naquele momento, Moisés perdeu a chance de ser um sacerdote:
“Originalmente [disse Elohim]
eu pretendia que você fosse o sacerdote e Arão, seu irmão, um levita. Agora ele
será o sacerdote e você será um levita”. [3]
Essa é a luta interior de Moisés,
transmitida pelo shalshelet. Ele está prestes a introduzir seu irmão em
um cargo que ele mesmo nunca ocupará. As coisas poderiam ter sido de outra
forma - mas a vida não é vivida no mundo do "poderia ter sido".
Ele certamente sente alegria pelo irmão, mas não pode evitar totalmente a
sensação de perda. Talvez ele já tenha percebido o que mais tarde se descobrirá,
que embora fosse o profeta e libertador, Aarão terá um privilégio que será
negado a Moisés, a saber, ver seus filhos e seus descendentes herdarem seu
papel. O filho de um profeta raramente é um profeta.
O que todas as quatro histórias
nos contam é que chega um momento para cada um de nós em que devemos tomar a
decisão final sobre quem somos. É um momento de verdade existencial. Ló é um
hebreu, não um cidadão de Sodoma. Eliezer é servo de Abraão, não seu herdeiro.
José é filho de Jacó, não um egípcio de moral frouxa. Moisés é um profeta, não
um sacerdote. Para dizer 'sim' a quem somos, temos que ter a coragem de dizer
'não' a quem não somos. Dor e luta estão sempre envolvidos neste tipo de
conflito. Esse é o significado do shalshelet. Mas emergimos menos
conflituosos do que antes.
Isso se aplica especialmente aos
líderes, e é por isso que o caso de Moisés em nossa parashá é tão importante.
Havia coisas que Moisés não estava destinado a fazer. Ele nunca se tornaria um
sacerdote. Essa tarefa coube a Aarão. Ele nunca lideraria o povo através do
Jordão. Esse era o papel de Josué. Moisés teve que aceitar ambos os fatos com
boa vontade se quisesse ser honesto consigo mesmo. E os grandes líderes devem
ser honestos consigo mesmos se quiserem ser honestos com aqueles que lideram.
Um líder nunca deve tentar
ser tudo para todas as pessoas. Um líder deve se contentar em ser quem é. Os
líderes devem ter força para saber o que não podem ser, se quiserem ter a
coragem de ser realmente o que têm de melhor.
Notas
[1] Deuteronômio 31:19.
[2] Tanhuma, Vayeshev 8; citado por Rashi em seu
comentário a Gênesis 39:8.
[3] Zevachim 102a.
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