Desde finais do período do segundo Templo que a contagem para Shavuot (Pentecostes) é polêmica. Essa polêmica gira entorno da interpretação para a expressão “desde o dia seguinte ao Sábado” na passagem de Levítico 23:15-16, que regula a forma de contar os dias até Shavuot. A passagem em questão é:
Depois para vós
contareis desde o dia seguinte ao sábado, desde o dia em que trouxerdes o molho
da oferta movida; sete semanas inteiras serão. Até ao dia seguinte ao sétimo
sábado, contareis cinquenta dias; então oferecereis nova oferta de alimentos ao
Senhor. (Levítico 23:15,16)
A polêmica surgiu no final do período do Segundo Templo e se mantém até os
nossos dias. Atualmente, o Judaísmo Rabínico - descendente dos antigos fariseus
- bem como muitas congregações cristãs e messiânicas, sustentam que o sábado em
questão se refere ao primeiro dia dos Pães Ázimos (entendido como um sábado
anual), enquanto que os antigos saduceus, judeus karaítas[1], samaritanos,
essênios e algumas congregações messiânicas/nazarenas sustentam que o sábado em
questão é o sábado semanal, o sétimo dia da semana.
Como iremos ver mais adiante, era esta última também a posição da chamada
igreja primitiva.
Sem querer pôr em causa a sinceridade com que cada um interpreta a
passagem, o propósito do presente
trabalho será apresentar os vários argumentos de cada uma das facções, para que
cada um possa conscientemente tomar uma posição esclarecida acerca da interpretação
que entende ser a mais correta mas, em simultâneo tomar uma posição quanto
àquela que é, no entender deste autor, a posição correta face às Escrituras.
Os argumentos apresentados para defender a posição de que o sábado em
questão é o sábado semanal e não o primeiro dia dos Pães Ázimos são vários. Listaremos
a seguir esses argumentos.
O Termo “Shabat”
O judaísmo Rabínico alega que o termo “shabat” nesta passagem se
refere ao primeiro dia dos Pães Ázimos, uma vez que este é descrito como um dia
de descanso e que, consequentemente, o dia a seguir seria o dia 16 do mês do Aviv
(Nissan). No entanto, a palavra hebraica empregada é “Shabat”, usada quase exclusivamente para se referir ao
sétimo dia da semana. As duas únicas exceções são para o Dia da Expiação (Yom
Kipur – Lv 16:31; 23:32) e ao Ano Sabático (Lv 25:4).
O termo que normalmente é aplicado as solenidades de YHWH é o termo “Shabaton”.
Esse termo não é equivalente a “Shabat”, nem tampouco é usado
intercaladamente com este último. Apesar de provir da mesma raiz, o seu
significado está relacionado a “descanso” ou “período de descanso”.
Por essa razão o sábado semanal é descrito como “Shabat Shabaton”, ou
seja, sábado de descanso.
Assim sendo, apesar de termos a proibição de trabalho e de serem dias de
descanso, as Escrituras não consideram que o primeiro e o último dia de Pães
Ázimos, por exemplo, sejam equivalentes ao sábado semanal. Até porque é lícito
fazer nesses dias tarefas que não são lícitas no sábado, como acender fogo e
cozinhar. Ainda que seja costumeiramente empregado a expressão “sábado anual”
para designar como dia de solenidade a YHWH, que são dias de descanso, é biblicamente
forçado, pois as Escrituras nunca aplicam o termo “shabat”.
Em outras palavras, isso significa que as solenidades de YHWH não constituem
um Shabat completo (chamado biblicamente de Shabat Shabaton), e
sim um dia em que não se exerce ou se usufrui de atividade servil, exceto Yom
Kipur, o qual o termo Shabat Shabaton está presente.
Relembremos a passagem em questão:
עֹ֖מֶר אֶת־ הֲבִ֣יאֲכֶ֔ם מִיּוֹם֙ הַשַּׁבָּ֔ת מִמָּחֳרַ֣ת לָכֶם֙ וּסְפַרְתֶּ֤ם 15
תִּהְיֶֽינָה׃ תְּמִימֹ֥ת שַׁבָּת֖וֹת שֶׁ֥בַע הַתְּנוּפָ֑ה
עַ֣ד מִֽמָּחֳרַ֤ת הַשַּׁבָּת֙
הַשְּׁבִיעִ֔ת תִּסְפְּר֖וּ חֲמִשִּׁ֣ים 16
י֑וֹם וְהִקְרַבְתֶּ֛ם
מִנְחָ֥ה חֲדָשָׁ֖ה לַיהוָֽה׃
15 Depois para vós contareis desde o dia seguinte ao sábado (mimochorat HaShabat), desde o dia em que trouxerdes o molho da oferta movida; sete semanas (shabatot) inteiras serão. 16 Até ao dia seguinte ao sétimo sábado (HaShabat), contareis cinquenta dias; então oferecereis nova oferta de alimentos ao Senhor. (Levítico 23:15,16)
O Judaísmo Rabínico alega ainda que os sete sábados informados na passagem
acima têm o significado de “semanas”, ou mais precisamente grupos de
sete dias – não necessariamente semanas que se iniciam no domingo e encerram no
sábado. E a tradução JFA transcrita acima espelha este entendimento ao traduzir
a palavra “Shabat” por “semanas”, uma tradução completamente
interpretativa e linguisticamente muito forçada, uma vez que “Shabat”
nunca é usado com o sentido de “semana” mas apenas como referência ao
sétimo dia.
Pelo contrário, é impossível que uma palavra que aparece repetida na mesma
passagem tenha significados diferentes, a menos que a própria passagem o
esclareça, o que não é o caso. Isto contraria a língua hebraica, pois sempre
que se pretende focar em um conjunto de sete dias qualquer, as Escrituras usam
a expressão “sete dias” (Ez.3:15):
וָאָב֨וֹא אֶל־הַגּוֹלָ֜ה תֵּ֣ל אָ֠בִיב
הַיֹּשְׁבִ֤ים אֶֽל־נְהַר־כְּבָר֙ ואשר [וָֽאֵשֵׁ֔ב] הֵ֖מָּה יוֹשְׁבִ֣יב
הַיֹּשְׁבִ֤ים אֶֽל־נְהַר־כְּבָר֙ ואשר [וָֽאֵשֵׁ֔ב] הֵ֖מָּה יוֹשְׁבִ֣יב שָׁ֑ם
וָאֵשֵׁ֥ביִ֥
וַיְהִ֕י מִקְצֵ֖ה שִׁבְעַ֣ת
יָמִ֑ים (פ) וַיְהִ֥י דְבַר־יְהוָ֖ה אֵלַ֥י לֵאמֹֽר׃
E fui a Tel-Abibe, aos do cativeiro, que moravam
junto ao rio Quebar, e eu morava onde eles moravam; e fiquei ali sete dias,
pasmado no meio deles. E sucedeu que, ao fim de sete
dias (sheva yamim), veio a palavra de YHWH a mim, dizendo: (Ezequiel
3:15,16)
Igualmente, a palavra “semanas” em Dt 16:9 é entendida pelos rabinos
como qualquer período de sete dias, porém o texto emprega o termo “shavua”,
do qual se extrai o termo "Shavuot" (Semanas) que dá nome a Solenidade, o qual representa o período de sete dias,
iniciando no primeiro dia da semana e terminando no sétimo (sábado), na maioria
dos textos em que é empregado na Escrituras:
שִׁבְעָ֥ה שָׁבֻעֹ֖ת תִּסְפָּר־לָ֑ךְ
מֵהָחֵ֤ל חֶרְמֵשׁ֙ בַּקָּמָ֔ה תָּחֵ֣ל לִסְפֹּ֔ר שִׁבְעָ֖ה שָׁבֻעֽוֹת׃
Sete semanas contarás;
desde que a foice começar na seara iniciarás a contar as sete semanas. (Deuteronômio 16:9)
Conclui-se pelas passagens acima que o termo “Shabat” se aplica apenas
ao sétimo dia da semana e nunca é empregado nas Escrituras no sentido de “semana”.
Assim sendo, a expressão “dia seguinte ao sábado” se refere
inquestionavelmente ao primeiro dia da semana (domingo), tanto na primeira
ocorrência (versículo 15) como na segunda (versículo 16), o que faz com que Shavuot
caia sempre em um domingo.
Ainda usando a mesma lógica para determinar que os dois “Shabat”,
nesta passagem, têm que forçosamente ter o mesmo significado, é o caso de se
perguntar: Se o primeiro “Shabat” se refere a um dia solene (o primeiro dia
dos Pães Ázimos) então como interpretar os sete sábados do versículo seguinte? Seriam
sete solenidades?
Um outro argumento surge dessa interpretação rabínica que é o seguinte: se Shavuot
é supostamente celebrado sempre no dia 6 do terceiro mês, conforme alega o Judaísmo
Rabínico, porque YHWH simplesmente não estipulou essa data na Torá, conforme
fez para todas as outras solenidades? Porquê instruir o povo para fazer uma
contagem de 50 dias? Bastaria dizer, à semelhança do que fez com as outras
solenidades, que o Pentecostes se celebraria no dia 6 do terceiro mês!
Adicionalmente, se verifica que o Ano do Yovel (Jubileu) é análogo à Shavuot,
pois tal como este é um dia solene 50 dias após sete semanas inteiras, sendo o
49º dia um sábado, também o Ano do Yovel é o 50º ano após um período de sete semanas
de anos, sendo que o 49º ano um Ano Sabático (ao qual o termo “Shabat”
se aplica conforme explicado anteriormente).
Por fim, uma análise do texto permite-nos ainda constatar que o termo “Shabat”
de Lv 23:15 é antecedido pelo artigo definido: “mimochorat HaShabbat” (“desde
o dia seguinte [a] ‘o sábado’”). O fato da palavra “Shabat”
ser antecedida pelo artigo definido ‘o’, aponta para um sábado específico - o
sétimo dia da semana mencionado no versículo 3 do mesmo capítulo e também
antecedido pelo mesmo artigo definido:
Seis dias trabalho se fará, mas o sétimo dia será
o sábado do descanso, santa convocação; nenhum trabalho fareis; sábado do
Senhor é em todas as vossas habitações. (Levítico 23:3)
O texto de Josué 5.10,11
Estando, pois, os filhos de Israel acampados em
Gilgal, celebraram a páscoa no dia catorze do mês, à tarde, nas campinas de
Jericó. E, ao outro dia depois da páscoa, nesse mesmo dia, comeram, do fruto da
terra, pães ázimos e espigas tostadas. (Josué 5:10,11)
Esta passagem nos indica que o primeiro dia da contagem para Shavuot tem de
ser o domingo dentro da semana dos Pães Ázimos. E para entender esse raciocínio
teremos de levar em conta que o povo de Israel estava proibido de comer do
fruto da terra, até terem apresentado as primícias a YHWH.
E não comereis pão, nem trigo tostado, nem espigas verdes, até aquele mesmo dia em que trouxerdes a oferta do vosso Elohim; estatuto perpétuo é por vossas gerações, em todas as vossas habitações (Levítico 23:14)
Josué nos informa que a oferta das primícias da cevada, na terra de Israel,
foi feita no dia seguinte ao sacrifício de Pessach, que ocorre no dia 14
do mês de Aviv (Nissan), ou seja, no dia 15 de Aviv e não no dia 16 conforme
alegam os rabinos.
Nas Escrituras Hebraicas o termo “Pessach” refere-se sempre ao
sacrifício do dia 14 de Aviv e nunca à solenidade que começa no dia 15, pois
essa é designada por “Chag HaMatzot” ou Festa dos Pães Ázimos.
A expressão “mimochorat HaShabbat” de Lv 23:15,16 significa a manhã após
o sábado, ou seja, a manhã de domingo. O que nos permite deduzir que no ano da
entrada do povo na Terra Prometida, o dia 14 do mês de Aviv caiu em um sábado.
Observa-se que a explicação rabínica segundo a qual as primícias são
oferecidas em 16 de Aviv (Nissan) não está correta, pois no ano em que o povo
entrou na Terra Prometida, as primícias foram oferecidas no dia 15. Isto nos permite
responder outra questão: a contagem começa no domingo dentro da semana dos Pães
Ázimos ou começa a seguir ao sábado dentro da semana dos Pães Ázimos? Ou seja,
quando isto acontece, as primícias são oferecidas no dia 15 ou no dia 22? A
questão é solucionada pelo precedente estabelecido quando da entrada do povo em
Canaã. Claramente, pela análise do episódio vemos que as primícias foram oferecidas
no dia 15 e não no dia 22.
A única ocasião em que o modelo rabínico coincidirá com a contagem correta
do livro de Josué é quando o dia 14 de Aviv (Nissan) cair na sexta, fazendo com
que o dia 16 seja o domingo . Nessa altura a contagem feita pelo rabinos e a
determinada pelas Escrituras esteja em sincronia.
O testemunho da Mishná
Ao longo do período do Segundo
Templo ocorreram diversas disputas políticas entre as seitas judaicas que
resultaram na adoção de um calendário babilônico transvestido de judaico como
calendário oficial de observação dos eventos bíblicos. O primeiro e mais
explícito testemunho das evidências históricas dessas disputas vem da própria
Mishná.
A Mishná, um importante compêndio
de estudos rabínicos, relata os diversos conflitos existentes entre fariseus e
saduceus (também conhecidos por boetusianos). E para ilustrar bem esses
conflitos, usaremos as divergências existentes sobre as datas de Yom HaBikurim
(Primícias) e Shavuot (Pentecostes).
Segundo ela, supostamente os
saduceus faziam de tudo para atrapalhar a proclamação da “lua nova”.
Evidentemente que, a partir daí, é inevitável concluir que fariseus e saduceus
seguiam calendários diferentes.
A Enciclopédia Judaica nos
informa:
A Mishná, bem como
a Baraita, menciona os boetusianos se opondo aos fariseus e dizendo que o mover
do molho na época de Pessach não deveria ser oferecido no segundo dia da festa,
mas no dia depois do Shabat de fato da festa da semana e, semelhantemente, que
Shavuot, que vem sete semanas e um dia depois, deveria ser celebrada após o
Shabat (Men. 10:3; compare também com Hag. 2:4).
O rabino
Yissocher Frand, em seu artigo “De Volta aos Costumes dos Fariseus e dos
Saduceus”, confirma a tese de que a origem dessa diferença estava baseada
em uma “Torá Oral” que supostamente regularia o calendário dos fariseus.
Sobre este conflito, ele relata:
A interpretação rabínica, baseada na tradição da
Lei Oral, era de que a ‘manhã após o dia de repouso’ significava o dia após
Pessach, a saber o 16º de Nissan. É baseado nessa tradição que nossa prática é
de começar a contagem do Omer no segundo dia de Pessach. Os tsedukim [saduceus]
eram literalistas que não acreditavam na Lei Oral, e interpretavam ‘manhã após
o Shabat’ como significando domingo. Assim, o domingo de Pessach seria o
primeiro dia da contagem do Omer, e a festa de Shavuot sempre seria no domingo,
sete semanas depois.
O historiador Flavio Josefo, citando um outro autor mais antigo – Nicolau
de Damasco, biógrafo de Herodes o Grande – informa que, quando o líder hasmoneano
Hircano estava em expedição com o seu exército, o exército teve de parar
durante dois dias seguidos por causa da celebração de Shavuot (Pentecostes),
que sabemos, ser calculado de forma diferente por Fariseus e Saduceus. Assim
nos escreve Josefo:
Pois era a Festa do Pentecostes, após o Sábado, e
não nos é permitido marchar nem no Sábado nem num dia de Festa.” (Antiguidades,
13:8:4)
Portanto, de acordo com o seu relato, Shavuot ocorreu em um domingo, ou
seja, logo após o sábado semanal. Seria um mero acaso nesse ano? A resposta é
não!
Hircano realizou esta campanha contra a Pártia como aliado de Antíoco VII
(Antíoco Sidetes – não confundir com o Epifânio). Antíoco VII morreu no final
desta campanha na Primavera do ano 129 a.C. No entanto, Antíoco VII só subjugou
a Judeia no Outono do seu 5º ano de reinado – 133/132 a.C. Como tal, esta
campanha de Hircano ao lado de Antíoco VII só poderia ter sido realizada no
período de 133 a 129 a.C. Nem antes, nem depois.
No entanto, podemos excluir o ano de 133 a.C. uma vez que a conquista da
Judeia só se deu no Outono e nós estamos a falar do período de Shavuot, que
geralmente ocorre nos meses de Maio ou Junho. Podemos também excluir o ano de
129 a.C. uma vez que Antíoco VII morreu antes do Shavuot desse ano. Assim,
resta-nos um cenário possível entre 132 a 130 a.C. Porém, pelos cálculos
farisaicos, em nenhum desses três anos Shavuot caiu no dia seguinte a um sábado
semanal.
Assim sendo, o relato de Josefo
comprova que o método de contagem em vigor era o método Saduceu, segundo o qual
Shavuot caía sempre em um domingo. Por isto o exército se imobilizou durante
dois dias seguidos. Não por acaso, mas porque Shavuot caia sempre a seguir ao
sábado semanal e o exército não podia marchar nem num dia nem no outro.
Por hora, concluímos, através de
fatos históricos, que na época do Segundo Beit HaMikdash (Templo) havia 2
calendários competindo entre si, espelhando a disputa político-religiosa entre
fariseus e saduceus.
Por Rui Quinta
Texto corrigido e adaptado por Francisco Adriano
Germano
Notas
[1] Os Judeus Karaitas são literalistas. Rejeitam as tradições e Leis Orais
do judaísmo rabínico e cingem-se apenas ou tanto quanto possível às Escrituras
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