Há um debate contínuo entre os sábios sobre se o nazireu - cujas leis estão delineadas na parashá desta semana - deveria ser elogiado ou não. Lembre-se de que o nazireu era alguém que voluntariamente, por um período específico, empreendia uma forma especial de santidade. Isso significava que ele estava proibido de consumir vinho ou quaisquer produtos derivados da uva, cortar o cabelo e se contaminar pelo contato com os mortos.
O nazireado era essencialmente
uma renúncia ao desejo. Porque alguém escolheria fazer isso não está claro. Talvez
quisesse se proteger da embriaguez, se curar do alcoolismo ou que quisesse
experimentar uma forma superior de santidade.
Estava proibido o contato com os
mortos, mesmo para um parente próximo. Dessa forma, ele estava, ao menos a esse
respeito, na mesma posição que o Sumo Sacerdote. Tornar-se um nazireu era uma
maneira pela qual um não cohen (sacerdote) poderia adotar um
comportamento semelhante ao do cohen.
Alguns sábios argumentam que a
justaposição da lei do nazireu com a da sotah, a mulher suspeita de
adultério, indicava o fato de que havia pessoas que se tornaram nazireus para
se proteger da imoralidade sexual. Nesse sentido, o álcool suprime as inibições
e aumenta o desejo sexual.
Seja como for, havia opiniões
divergentes sobre se era bom ou ruim tornar-se nazireu. Por um lado, a Torá o
chama de "santo para Elohim" (Num. 6:8). Por outro lado, ao
completar seu período de abstinência, ele é ordenado a trazer uma oferta pelo
pecado (Num. 6:13-14). Disto, Rabino Eliezer Hakappar Berebi, tirou a seguinte
inferência:
Qual é o
significado da frase (Num. 6:11), e fazer expiação por ele, porque ele pecou
contra a alma (geralmente traduzido como "entrando em contato com os
mortos"). Contra qual alma ele pecou? Devemos concluir que se refere a
negar a si mesmo o gozo do vinho. Disto podemos inferir que, se alguém que se
nega a desfrutar do vinho é chamado de pecador, ainda mais aquele que se nega a
desfrutar de outros prazeres da vida. Segue-se que aquele que mantém o jejum é
chamado de pecador. (Taanit 11a; Nedarim 10a)
Claramente, R. Eliezer Hakappar
está se envolvendo em uma polêmica contra o ascetismo na vida judaica. Não
sabemos quais grupos ele teria em mente. Muitos dos primeiros cristãos eram
ascetas, assim como em alguns aspectos, os membros da seita de Qumran.
Pessoas santas em muitas religiões escolheram, em busca da pureza espiritual,
retirar-se do mundo, dos seus prazeres e das tentações, jejuar, se afligir e
viver em cavernas, retiros ou mosteiros.
Na Idade Média, havia judeus que
adotaram práticas de abnegação - entre eles os Hassidei Ashkenaz, os
pietistas do norte da Europa, assim como muitos judeus em terras islâmicas. É
difícil não ver nesses padrões de comportamento pelo menos alguma influência do
ambiente não judeu. O Hassidei Ashkenaz que floresceu durante o tempo
das Cruzadas viveu entre cristãos profundamente piedosos e mortificantes. Seus
homólogos do Sul deveriam estar familiarizados com o sufismo, o movimento
místico do Islã.
A ambivalência dos judeus em
relação à vida de abnegação pode, portanto, residir na suspeita de que ela
entrou no judaísmo por fora. Houve movimentos nos primeiros séculos da Era
comum, tanto no Ocidente (Grécia) quanto no Oriente (Irã), que viam o mundo
físico como um lugar de corrupção e conflito. Eles eram dualistas, sustentando
que o Deus verdadeiro não era o criador do universo e não poderia ser alcançado
dentro do universo. O mundo físico foi obra de uma divindade inferior e má.
Portanto, santidade significa retirar-se do mundo físico, de seus prazeres,
apetites e desejos. Os dois movimentos mais conhecidos para defender essa visão
foram o gnosticismo no Ocidente e o maniqueísmo no Oriente.
O que é notável, entretanto, é a
posição de Maimônides, que mantém ambas as visões, positivas e negativas. Em Hilkhot
Deot, as Leis do Caráter Ético, Maimônides adota a posição negativa de R.
Eliezer Hakappar:
"Uma pessoa
pode dizer: 'Desejo, honra e coisas semelhantes são caminhos ruins para seguir
e remover uma pessoa do mundo, portanto, eu irei separar-me completamente deles
e ir para o outro extremo. ' Como resultado, ele não come carne, não bebe
vinho, não toma uma esposa, nem vive em uma casa decente, nem usa roupas
decentes... Isso também é ruim e é proibido escolher assim. " (Hilkhot
Deot 3: 1)
No entanto, no mesmo livro, a Mishneh
Torá, ele escreve:
"Quem jura a Elohim
[se tornar um nazireu] por meio da santidade, faz bem e é louvável... Na
verdade, as Escrituras o consideram igual a um profeta" (Hilkhot Nezirut
10:14).
Como pode um escritor adotar uma
posição tão contraditória - quanto mais uma tão resolutamente lógica quanto
Maimônides?
A resposta é profunda. Segundo
Maimônides, não existe um modelo de vida virtuosa, mas dois. Ele os chama,
respectivamente, de caminho do santo (Hassid) e do sábio (Hakham).
O santo é uma pessoa de extremos.
Maimônides define hassid como comportamento extremo – “bom
comportamento, com certeza, mas conduta que excede o que a justiça estrita
requer” (Guide for the Perplexed III, 52). Assim, por exemplo, "Se
alguém evita a arrogância ao máximo e se torna extremamente humilde, é
denominado santo (hassid)" (Hilkhot Deot 1:5).
O sábio é um tipo de pessoa
completamente diferente. Ele segue o "meio dourado", o "caminho
do meio" de moderação e equilíbrio. Ele ou ela evita os extremos da
covardia de um lado, a imprudência do outro, e assim adquire a virtude da
coragem. O sábio evita a avareza e a renúncia à riqueza, acumulando ou dando
tudo o que possui, e assim se torna nem mesquinho nem temerário, mas generoso.
Ele ou ela conhece os perigos gêmeos do muito e do pouco - excesso e
deficiência. O sábio pesa pressões conflitantes e evita extremos.
Não são apenas dois tipos de
pessoa, mas duas maneiras de compreender a própria vida moral. O objetivo da
moralidade é alcançar a perfeição pessoal? Ou é para criar relacionamentos graciosos
e uma sociedade decente, justa e compassiva? A resposta intuitiva da maioria
das pessoas seria dizer: ambos. Isso é o que torna Maimônides um pensador tão
perspicaz. Ele percebe que você não pode ter os dois - que são, na verdade, caminhos
diferentes.
Um santo pode dar todo o seu
dinheiro aos pobres. Mas e os membros da própria família do santo? Um santo
pode se recusar a lutar na batalha. Mas e os concidadãos do santo? Um santo
pode perdoar todos os crimes cometidos contra ele. Mas e o Estado de Direito e
a justiça? Os santos são pessoas extremamente virtuosas, consideradas como
indivíduos. Mas você não pode construir uma sociedade somente com santos. Na
verdade, os santos não estão realmente interessados na sociedade. Eles
escolheram um caminho diferente, solitário e auto segregador. Eles buscam a
salvação pessoal em vez da redenção coletiva.
É essa percepção profunda que
levou Maimônides a suas avaliações aparentemente contraditórias do nazireu. O
nazireu escolheu, pelo menos por um período, adotar uma vida de extrema
abnegação. Ele é um santo, um hassid. Ele adotou o caminho da perfeição
pessoal. Isso é nobre, louvável, um ideal elevado.
Mas não é o caminho do sábio - e
você precisa de sábios se deseja aperfeiçoar a sociedade. A razão pela qual o sábio
não é um extremista é porque ele percebe que há outras pessoas em jogo. Existem
os membros da própria família; os outros dentro da própria comunidade; há
colegas no trabalho; há um país para defender e uma nação para ajudar a
construir.
O sábio sabe que é perigoso, até
mesmo moralmente autocomplacente, deixar todos esses compromissos para trás e
buscar uma vida de virtude solitária. Pois somos chamados por Elohim para viver
no mundo, não para escapar dele; na sociedade, não em reclusão; esforçando-se
para criar um equilíbrio entre as pressões conflitantes sobre nós, não focar em
algumas e negligenciar as outras. Portanto, embora de uma perspectiva pessoal o
nazireu seja um santo, de uma perspectiva social ele é, pelo menos
figurativamente, um "pecador" que deve trazer uma oferta de
expiação.
O Judaísmo abre espaço para que
os indivíduos escapem das tentações do mundo. O exemplo supremo é o nazireu.
Mas esta é uma exceção, não a norma. Ser um hakham, um sábio, é ter a
coragem de se envolver com o mundo, apesar de todos os riscos espirituais, e
ajudar a trazer um fragmento da presença Divina para os espaços compartilhados
de nossa vida coletiva.
Pelo Rabino Lord Jonathan Sacks
Texto corrigido e adaptado por Francisco Adriano Germano
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