Introdução
Poucas práticas são tão mal
compreendidas e tão distorcidas de seu contexto bíblico original quanto a
prática moderna da unção com óleo.
Hoje em dia, unge-se com óleo
abundantemente: Unge-se objetos com óleo, como se aquilo conferisse algum tipo
de poder ou proteção especial; unge-se fotografias de pessoas que querem ser
libertas; unge-se pessoas que estejam passando por dificuldades; unge-se
lugares para afastar demônios; unge-se pessoas que estejam enfermas como se
isso pudesse trazer cura etc.
Criatividade não falta para
aplicação da prática da unção. Aliás, palavra essa que também virou sinônima de
“poder especial” ou algo do gênero. Não é raro falar sobre pregadores
eloquentes e curandeiros gospel como pessoas que “têm a unção”. É
admirável o quão distante isso está do conceito bíblico.
Se não falta criatividade nem
misticismo, certamente falta base nas Escrituras. Porque a maioria quer apenas
ler a Bíblia para justificar o que já faz ou o que acha correto fazer – o que é
bem fácil, diga-se de passagem. Poucos se dedicam à árdua tarefa de se
perguntar: O que a Bíblia quer dizer com essa prática? Como se originou e o que
significa? Façamos isso, e a verdade nos libertará de qualquer engano.
O óleo nos tempos bíblicos
Nos tempos bíblicos, o óleo era considerado
uma matéria prima cara. Porque era algo de difícil extração com técnicas
manuais rudimentares. Por esta razão, abundância em óleo era considerado um
sinal de prosperidade:
Para Asher disse:
bendito seja Asher entre todos os filhos! Seja o favorito de seus irmãos, e
mergulhe os pés no óleo. (Devarim/Deuteronômio 33:24)
Quando o Shadai
estava ainda comigo, e meus filhos em volta de mim; quando os meus pés se
banhavam no creme, e o rochedo em mim derramava ondas de óleo. (Iyov/Jó 29:5-6)
O óleo tinha nos tempos bíblicos
diversas propriedades: Era usado para iluminação, na alimentação, como
cosmético, como medicamento, em ritos religiosos, entre outras aplicações.
A ideia de se ungir com óleo não
era exclusiva dos israelitas, e possivelmente sequer seja originária de Israel.
Nas demais culturas da região da Mesopotâmia, o hábito também era comum, e
semelhantemente indicava uma importância da pessoa.
Em um texto egípcio encontrado na
pirâmide de Teti I, de aproximadamente 2300 a 2400 AC, lê-se:
“… os guardiões do
Egito, que se vestem com […] linho, que vivem de figos, que bebem do vinho, que
se ungem com o melhor óleo…” (Textos da Pirâmide, encantamento 400)
Observe que os nobres aqui
indicados são descritos como se ungindo com o melhor óleo, como um ato que
expressa sua prosperidade ou importância aristocrática.
Ungir e o uso cosmético
O uso do óleo como indicativo de
importância tem sua origem no uso cosmético. Óleos, especialmente aromáticos,
faziam parte da higiene regular – não apenas por seu aroma, mas também por suas
propriedades hidratantes e isolantes, capazes de ajudar a proteger contra a
ação do tempo.
Esse uso cosmético é visto
abundantemente nas Escrituras, tal como pode ser observado abaixo:
Lava-te, pois, e
unge-te, e veste os teus vestidos, e desce à eira; porém não te dês a conhecer
ao homem, até que tenha acabado de comer e beber. (Rute 3:3)
E o vinho que
alegra o coração do homem, o óleo [mishamen - משמן] que lhe faz brilhar o rosto e o pão que
lhe sustenta as forças. (Tehilim/Salmos 104:15-16)
O odor dos teus
perfumes [shemaneicha - שמניך]
é suave, teu nome é como um óleo [shemen - שמן] escorrendo, e as donzelas se enamoram de
ti. (Shir haShirim/Cantares 1:3)
Vale ressaltar que, embora as
traduções acima tragam “perfumes” e “óleo”, o substantivo no
hebraico original é essencialmente o mesmo, variando apenas de conjugação.
Isso é visto também na B’rit
Chadashá (Novo Testamento):
Tu, porém, quando
jejuares, unge a tua cabeça, e lava o teu rosto, para não mostrar aos homens
que estás jejuando, mas secretamente a teu Pai, e teu Pai, que vê em secreto,
te recompensará. (Matitiyahu/Mateus 6:17-18)
De fato, a ideia de se perfumar e
a de se ungir, do ponto de vista da cosmética semita, eram praticamente
sinônimas, visto que os perfumes primitivos eram praticamente todos de base
oleosa.
Não é difícil de perceber de
onde, portanto, deriva a prática da unção de pessoas importantes. Como indica o
próprio texto antigo egípcio citado no início, os nobres tinham acesso ao “melhor
dos óleos”.
Assim como, na nossa sociedade,
uma pessoa de posses utiliza os melhores adornos, as maiores joias e as
vestimentas mais caras, nos tempos bíblicos as pessoas mais importantes – como
reis, líderes tribais e patriarcas de famílias – eram as que tinham acesso aos
óleos e bálsamos mais caros e mais raros.
Observa-se essa prática, por
exemplo, na corte persa, que é assim descrita no livro de Hadassa (Ester):
Toda jovem
começava por sujeitar-se, durante doze meses, à lei das mulheres. Nesse período
se purificavam seis meses com óleo de mirra, e seis meses com cosméticos e
outros bálsamos em uso entre as mulheres. (Hadassa/Ester 2:12)
Tratar-se com mirra e bálsamos
aromáticos por seis meses era algo absurdamente ostentoso naqueles tempos.
Seria como se, atualmente, alguém dissesse que um grande grupo de pessoas
comeria meio quilo de caviar diariamente em todas as refeições, por igual período!
A unção com óleo prescrita na
Torá tanto para cohanim (sacerdotes), quanto para coisas sagradas também é
encontrada nos escritos narrativos aplicados a reis, não tinha qualquer
significado místico e é bastante simples de entender.
O óleo da unção: Um perfume!
Óleos aromáticos, como o
prescrito a Moshe (Moisés) eram bálsamos caros e especiais, feitos com
especiarias aromáticas, para indicar a importância das pessoas ou dos objetos.
Observe o que a Torá diz:
YHWH falou a
Moisés, dizendo: Quanto a ti, procura bálsamo de primeira qualidade: quinhentos
siclos de mirra virgem; a metade, ou seja, duzentos e cinquenta, de cinamomo
balsâmico, e outro duzentos e cinquenta de cálamo balsâmico; quinhentos siclos
de cássia, segundo o peso do siclo do santuário, e um him de azeite de
oliveira. Com tudo isso farás um óleo [shemen - שמן] para a unção sagrada, um perfume
aromático, trabalho de perfumista. Será o óleo [shemen - שמן] para a unção sagrada. (Shemot/Êxodo
30:22-25)
O óleo da unção dos objetos do
Mishkan (Tabernáculo) e dos cohanim (sacerdotes) não era simplesmente azeite.
Era o que seria hoje em dia considerado equivalente a um perfume caríssimo!
Para que o leitor compreenda,
seria o equivalente hoje em dia a alguém colocar objetos de ouro e pedras
preciosas nos objetos do Mishkan (Tabernáculo), bem como sobre as vestimentas
daqueles que serviriam a YHWH.
O óleo não tem qualquer sentido
místico. O óleo da unção é um ato de coroação, e indica a majestade de YHWH!
Tanto que a Torá afirma que esse óleo não poderia ser copiado, nem usado por
pessoas comuns:
E falarás aos
filhos de Israel, dizendo: Este me será o óleo [shemen - שמן] da unção sagrada nas vossas gerações. Não
se ungirá com ele a carne do homem, nem fareis outro de semelhante composição;
santo é, e será santo para vós. O homem que compuser um perfume como este, ou
dele puser sobre um estranho, será extirpado do seu povo. (Shemot/Êxodo
30:31-33)
Trazendo para os dias atuais,
seria como se a nossa constituição proibisse alguém de trajar a faixa
presidencial, ou se a lei inglesa proibisse alguém de fazer joias semelhantes
às da coroa da família real. Aquele perfume caríssimo era um sinal especial da
realeza de YHWH.
Ungir alguém, nos tempos
bíblicos, não seria diferente de se usar uma faixa numa cerimônia de condecoração,
ou de posse de um cargo público. E o ungir objetos sagrados não seria diferente
de, nos tempos atuais, se fazer uma placa comemorativa numa cerimônia de
inauguração de uma obra importante, onde alguém fosse homenageado. O óleo
simplesmente indicava a importância da pessoa ou do objeto.
E no Mishkan (Tabernáculo), mais
do que qualquer coisa, inclusive, o homenageado nos atos de unção era o próprio
YHWH. Era a Sua “coroação” ou “dedicação”, digamos assim - o que
é evidenciado pela proibição de se colocar o seu perfume sobre a carne de
qualquer homem.
É interessante, contudo, que a
Torá sequer fala da ideia de que alguém pudesse utilizar o óleo da unção com
algum tipo de significado místico. Não! Uma pessoa da época poderia ser tentada
a utilizá-lo como perfume. Isso indica a total ausência de qualquer sentido
supostamente espiritual da prática.
Yeshua é ungido
Diante disso, releia agora o
episódio a seguir, ocorrido com Yeshua:
Estando Yeshua em
Beit Anyah, em casa de Shimon, o fabricante de vasos, aproximou-se dele uma
mulher que trazia um vaso de alabastro cheio de bálsamo precioso, e lho
derramou sobre a cabeça, estando ele reclinado à mesa. Quando os talmidim viram
isso, indignaram-se e disseram: ‘Para que este desperdício? Pois este bálsamo
podia ser vendido por muito dinheiro, que se daria aos pobres.’
(Matitiyahu/Mateus 26:10)
Yeshua posteriormente fala do
bálsamo que o ungiu para a morte – porque os mortos também eram untados em
rituais funerais – porém observe que o gesto da mulher foi feito para
demonstrar importância. Na cultura semita, era como se ela desse a ele uma joia
preciosa para adorná-Lo.
Ninguém naqueles tempos seria
ungido com o azeite fétido e simples que se usa hoje nos ritos religiosos,
muito menos ainda teria qualquer pessoa atribuído a esse gesto alguma conotação
mística. Falar de um gesto de unção com bálsamo – prefiro esse termo ao termo
óleo, por ser mais próximo no nosso uso cultural ao que era à época – como se
fosse um gesto místico seria tão absurdo como afirmar que um militar
condecorado com uma medalha passa por um gesto místico.
Não à toa, observe os presentes
trazidos pelos sábios do Oriente a Yeshua, em razão de seu nascimento:
E, entrando na
casa, acharam o menino com Miriyam sua mãe e, prostrando-se, o adoraram; e
abrindo os seus tesouros, ofertaram-lhe dádivas: ouro, incenso e mirra.
(Matitiyahu/Mateus 2:11)
Os presentes oferecidos a Yeshua
indicam o reconhecimento, por parte dos sábios, de que Ele era o Rei escolhido.
A mirra, uma especiaria bastante cara, era um bálsamo muito utilizado na
realeza.
O Ungido
Um “ungido” – ou “mashiach”
(משיח)
no hebraico – tem exatamente essa conotação: uma pessoa de suma importância,
destacada, escolhida para uma função especial.
A partir daí, temos a ideia de “O”
Ungido – a que chamamos de o Messias – que é a pessoa mais importante de todas,
a de maior poder, ou com a maior missão e, portanto, a de maior destaque. O Rei
Supremo, por assim dizer.
É com base nesse contexto que
devemos entender a profecia citada acerca de Yeshua:
A Ruach YHWH é
sobre mim, pois que me ungiu para pregar aos pobres. Enviou-me a curar os
quebrantados do coração. (Lucas 4:18)
Ter sido “ungido”
significa que Yeshua foi apontado para uma posição especial. Nada mais do que
isso. Não há necessidade de perverter a mensagem simples das Escrituras com
ideias mirabolantes.
A Advertência Bíblica
A perversão está nisto: Essas
ideias mirabolantes posteriormente são utilizadas para se justificar práticas
inventadas, doutrinas de homens, e muitas vezes até mesmo práticas abomináveis
aos olhos da Torá.
Não nos esqueçamos de que as
Escrituras nos advertem:
Deixa-te estar com
os teus encantamentos, e com a multidão das tuas feitiçarias, em que
trabalhaste desde a tua mocidade, a ver se podes tirar proveito, ou se
porventura te podes fortalecer. (Yeshayahu/Isaías 47:12)
Como se pode observar, a unção
bíblica tem como única semelhança com a unção moderna o ato de se passar uma
substância oleosa na pessoa.
Sha’ul Bentsion
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