Os Mandamentos (Mitzvot) é a estrutura que mantém o amor vivo.
Nos últimos meses, conversei com
importantes pensadores, intelectuais, empreendedores e filantropos para uma
série da BBC sobre os desafios morais do século XXI. Entre aqueles com quem
falei estava David Brooks, um dos filósofos mais perspicazes de nosso tempo.
Sua conversa é sempre cintilante, mas um comentário seu foi particularmente
bonito. É uma chave que nos ajuda a desbloquear todo o projeto descrito por
Moisés em Sefer Devarim (Livro de Deuteronômio), o quinto e último livro da
Torá.
Estávamos conversando sobre
alianças e compromissos. Sugeri que muitas pessoas no Ocidente hoje são avessas
a compromissos, relutam em se vincular incondicionalmente e de forma aberta a
algo ou alguém. A mentalidade de mercado que predomina hoje nos incentiva a
tentar isso, provar aquilo, experimentar e manter nossas opções em aberto para
a versão mais recente ou o melhor negócio. Promessas de lealdade são poucas e
distantes.
Brooks concordou e observou que
hoje em dia a liberdade é geralmente entendida como libertinagem, ou seja,
ausência de restrição. Não gostamos de ser amarrados. Mas a liberdade real que
vale a pena ter, na opinião dele é a liberdade de fazer, ou seja, a capacidade
de fazer algo difícil e que exige esforço e conhecimento [1]. Por exemplo, se
você quer ter a liberdade de tocar piano, precisa se comprometer em praticar
todos os dias.
A liberdade, nesse sentido, não
significa a ausência de restrição, mas a escolha da restrição certa. Isso
envolve estar compromissado em renunciar a certas escolhas. Então ele disse: “Minha
definição favorita de compromisso é se apaixonar por alguma coisa e, em
seguida, construir uma estrutura de comportamento em torno dela para o momento
em que o amor vacila”.
Isso me pareceu um belo caminho
para uma das características fundamentais do Sefer Devarim (Livro de
Deuteronômio) - especificamente e do Judaísmo em geral. O livro de Deuteronômio
é mais do que simplesmente os discursos de Moisés nos últimos meses de sua
vida, sua tzavaah ou vontade ética para as gerações futuras. É mais também
que uma Mishneh Torá [2], uma recapitulação do restante da Torá, uma
reafirmação das leis e da história do povo desde sua saída do Egito.
Trata-se de uma afirmação
teológica fundamental sobre o que é o Judaísmo. É a tentativa de integrar lei e
a narrativa em uma única visão coerente de como seria uma sociedade de
liberdade governada pela lei, sob a soberania de Elohim: uma sociedade de
justiça, compaixão, respeito pela dignidade humana e pela santidade de Elohim.
E é construída em torno de um ato de compromisso mútuo, por Elohim com um povo
e do povo com Elohim.
O compromisso em si é um ato de
amor. No centro disso estão as famosas palavras do Shemá na parashá
desta semana:
"Amarás o SENHOR
teu Elohim com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua
força" (Dt. 6:5)
A Torá é a narrativa fundamental
do casamento, às vezes tempestuoso, entre Elohim e um povo muitas vezes
obstinado. É uma história de amor.
Podemos ver como o amor é central
no livro de Deuteronômio observando com que frequência a raiz ahav, "amar",
aparece em cada um dos cinco livros da Torá. Isso ocorre 15 vezes no Gênesis,
mas nada disso é sobre o relacionamento entre Elohim e um ser humano. Eles são
sobre os sentimentos de maridos por esposas ou pais de filhos. Esta é a
frequência com que o verbo aparece nos outros 4 livros:
Êxodo - 2
Levítico - 2
Números - 0
Deuteronômio - 23
Repetidas vezes, ouvimos falar de
amor, em ambas as direções, dos israelitas a Elohim e de Elohim aos israelitas.
São os últimos que são particularmente impressionantes. Aqui estão alguns
exemplos:
O SENHOR não tomou
prazer em vós, nem vos escolheu, porque a vossa multidão era mais do que a de
todos os outros povos, pois vós éreis menos em número do que todos os povos;
Mas, porque o SENHOR vos amava, e para guardar o juramento que fizera a vossos
pais, o SENHOR vos tirou com mão forte e vos resgatou da casa da servidão, da
mão de Faraó, rei do Egito. (Deuteronômio 7:7,8)
Eis que os céus e
os céus dos céus são do SENHOR teu Elohim, a terra e tudo o que nela há.
Tão-somente o SENHOR se agradou de teus pais para os amar; e a vós,
descendência deles, escolheu, depois deles, de todos os povos como neste dia se
vê. (Deuteronômio 10:14,15)
Porém o SENHOR teu
Elohim não quis ouvir Balaão; antes o SENHOR teu Elohim trocou em bênção a
maldição; porquanto o SENHOR teu Elohim te amava. (Deuteronômio 23:5)
A verdadeira questão é como essa
visão está conectada ao conteúdo legal e halárquico de grande parte de Devarim.
Por um lado, temos essa apaixonada declaração de amor do ETERNO por um povo;
por outro, temos um código de lei detalhado que cobre a maioria dos aspectos da
vida das pessoas e da nação como um todo, uma vez que entra na terra. Lei e
amor não são duas coisas que andam obviamente juntas. O que tem um a ver com o
outra?
É isso que a observação de David Brooks
sugere: Compromisso é se apaixonar por algo e, em seguida, construir uma
estrutura de comportamento em torno dele para sustentar esse amor ao longo do
tempo. Lei, mandamentos, halachá - é essa estrutura de comportamento. O amor é
uma paixão, uma emoção, um estado elevado, uma experiência momentânea. E um
estado emocional que não pode ser garantido para sempre. Casamo-nos em poesia,
mas continuamos casados em prosa. E é por isso que precisamos de leis, rituais,
hábitos de ação. Os rituais são a estrutura que mantém o amor vivo.
Uma vez conheci um casal
maravilhosamente feliz. O marido, com grande devoção, trazia o café da manhã
para a esposa na cama todas as manhãs. Não tenho certeza de que ela precisasse
ou até desejasse o café da manhã na cama todas as manhãs, mas ela aceitou
graciosamente porque sabia que era a homenagem que ele a queria prestar, e isso
realmente mantinha vivo o amor deles. Depois de décadas de casamento, eles
ainda pareciam estar em lua de mel.
Sem a pretensão de se fazer uma comparação
precisa, é isso que a vasta multiplicidade de rituais no judaísmo, muitos deles
explicitada no livro de Deuteronômio, realmente alcançou. Eles sustentaram o
amor entre Elohim e o povo. Você ouve as cadências desse amor através das
gerações.
Está lá no livro dos Salmos:
“Ó Elohim, tu és o
meu Elohim, de madrugada te buscarei; a minha alma tem sede de ti; a minha
carne te deseja muito em uma terra seca e cansada, onde não há água;” (Salmos
63:1)
Está em Isaías:
“Porque os montes
se retirarão, e os outeiros serão abalados; porém a minha benignidade não se
apartará de ti, e a aliança da minha paz não mudará, diz o SENHOR que se
compadece de ti.” (Isaías 54:10)
Se eles falam do amor de Elohim
por nós ou do nosso por Ele, o amor permanece forte depois de 33 séculos. É
muito tempo para o amor durar, e acreditamos que o fará para sempre.
Poderia ter feito isso sem os
rituais e dos mandamentos que enchem nossos dias com lembretes da presença de
Elohim? Eu acho que não. Sempre que os judeus abandonavam a vida dos
mandamentos, em poucas gerações perdiam sua identidade. Sem os rituais,
eventualmente o amor morre. Com eles, as brasas brilhantes permanecem e ainda
têm o poder de explodir em chamas. Nem todo dia em um casamento longo e feliz
parece um casamento, mas mesmo o amor envelhecido ainda será forte, se a
coreografia da devoção, as cortesias e gentilezas rituais forem mantidas.
Na vasta literatura da halachá,
encontramos o "como" e o "quê" da vida
judaica, mas nem sempre o "porque". O lugar especial do Sefer
Devarim no Judaísmo como um todo é que aqui, mais claramente do que em qualquer
outro lugar, encontramos o “porque”. A lei judaica é a estrutura de
comportamento construída em torno do amor entre Elohim e Seu povo, para que o
amor permaneça muito tempo depois que os primeiros sentimentos de paixão
envelhecerem.
Daí a ideia de mudar a vida: se
você procura tornar o amor eterno, construa em torno dele uma estrutura de
rituais - pequenos atos de bondade, pequenos gestos de auto sacrifício pelo bem
do amado - e você será recompensado com uma alegria silenciosa, uma luz
interior que durará a vida inteira.
Rabino Lord Jonathan
Sacks
NOTAS:
1. Isso é semelhante, embora não
idêntico, à distinção de Isaiah Berlin entre liberdade negativa e positiva, em
seu famoso ensaio, 'Two Concepts of Liberty', reimpresso em Isaiah Berlin,
Liberty , ed. Henry Hardy, Oxford University Press, 2002, 166-217.
2. Este era o nome rabínico
original do livro. O nome Deuteronômio, do latim que significa "segunda
lei", foi uma tentativa de capturar o sentido do livro como uma
reformulação das leis.
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