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VALORIZE O QUE VOCÊ RECEBE

  



Nesta semana começamos o último livro da Torá, Devarim, também conhecido como "Mishnê Torá" (a repetição da Torá), pois este livro é dedicado integralmente às últimas palavras de Moshé (Moisés) ao povo israelita, em sua despedida antes do seu falecimento e da entrada do povo na Terra Prometida. Moshé deixou para o final da sua vida a importante missão de recapitular os principais acontecimentos dos últimos 40 anos em que o povo passou no deserto, apontando os erros cometidos, justamente para possibilitar que o povo aprendesse com seus tropeços e não voltasse a cometê-los no futuro.

 

Na Parashá desta semana, Devarim (literalmente "palavras"), Moshé relembrou o momento em que o sistema judiciário do povo israelita foi modificado, com a criação de várias instâncias de justiça, responsáveis por cuidar de todos os casos de questionamentos e disputas, desde os mais simples até os mais complexos. Moshé relembra que havia advertido aos recém nomeados juízes a não mostrar nenhum tipo de favoritismo que pudesse comprometer o veredito de um caso que estivessem julgando, conforme está escrito:

 

"E eu ordenei aos juízes naquele momento e disse: 'Escutem (as discussões) entre seus irmãos e julguem-nos com retidão'" (Deuteronômio/Devarim 1:16).

 

Em outras palavras, Moshé estava advertindo os juízes a serem corretos e justos, não aceitando nenhum tipo de suborno, pois, conforme afirma a Torá, "o suborno cega os olhos do sábio" (Deuteronômio/Devarim 16:19).

 

Na sociedade na qual vivemos atualmente, onde a moralidade está tão corrompida, infelizmente o conceito de suborno tornou-se algo normal e, algumas vezes, até mesmo aceitável. Em nossa concepção, suborno refere-se à aceitação, por parte de um juiz, de favores ou considerações pessoais que fazem com que ele veja um dos litigantes de forma mais favorável do que o outro, influenciando diretamente na forma como ele conduz seu julgamento. Porém, o Talmud (Ketubot 105b) nos ensina que suborno não se refere necessariamente a vantagens monetárias. Mesmo favores mínimos, pequenos agrados e gestos, por mais insignificantes que possam parecer, podem afetar a percepção de um juiz e causar um desvio no seu julgamento. O Talmud afirma que até mesmo dizer coisas agradáveis e lisonjeiras a um juiz é considerado suborno, pois pode distorcer um julgamento.

 

O Talmud traz uma lista de vários sábios que se recusaram a participar em um julgamento após receberem pequenos favores. Mas o que nos chama a atenção nestes casos é que se tratava de coisas tão triviais que dificilmente consideraríamos suborno. Por exemplo, o grande sábio Shmuel estava tendo dificuldades para atravessar uma ponte e foi prontamente ajudado por uma pessoa que passava por ali. Shmuel perguntou ao homem qual era o motivo pelo qual ele estava passando por ali, e ele, sem saber que estava diante do grande sábio, respondeu que tinha um caso a ser julgado no Beit Din presidido pelo sábio Shmuel. Ao escutar isso, Shmuel imediatamente desqualificou-se para o julgamento do caso, com medo de que o favor recebido ao ser ajudado a atravessar a ponte, pudesse inconscientemente fazê-lo querer que aquele homem ganhasse o caso.

 

Outro grande sábio do Talmud, chamado Ameimar, estava sentado em seu Beit Din quando uma pena pousou sobre a sua cabeça. Uma pessoa que estava presente prontamente levantou-se e removeu a pena de sua cabeça. Ameimar perguntou ao homem o que ele fazia no Beit Din e ele respondeu que estava aguardando o julgamento do seu caso. Ameimar imediatamente desqualificou-se como juiz daquele caso, por sentir-se subornado pelo ato de gentileza daquele homem.

 

É incrível ver o nível de rigorosidade, de elevado temor a Elohim, impunham sobre si mesmos em relação aos cuidados com o suborno. Porém, o Rav Avraham Yaacov Pam zt"l (Lituânia, 1913 - EUA, 2001) faz um interessante questionamento. Estas histórias relatadas pelo Talmud envolvem grandes sábios. Por acaso eles eram tão influenciáveis a ponto de desviarem um julgamento por terem recebido favores tão pequenos? Será que nós desviaríamos um julgamento apenas pelo fato de uma das partes envolvidas ter nos ajudado a atravessar a rua ou ter limpado o nosso chapéu? Estes grandes sábios do Talmud não deveriam acreditar mais em si mesmos, em sua seriedade e temor a Elohim, ao invés de acharem que seriam influenciados por questões tão pequenas e triviais?

 

O Rav Pam responde que o Talmud não está nos transmitindo apenas uma mensagem em relação à integridade no julgamento ou à natureza destruidora dos subornos. O Talmud também está nos ensinando sobre o "Hakarat Hatov", o nível de reconhecimento e agradecimento que devemos ter com aqueles que nos fazem algum favor.

 

Por que consideramos que estes pequenos favores não seriam suficientes para desviar nosso julgamento? Infelizmente não é por nosso incrível nível de temor a Elohim e retidão. Justamente o contrário, é por nosso total descaso com as bondades que recebemos dos outros. Não sabemos dar o verdadeiro valor a tudo de bom que recebemos das pessoas. 


Os sábios do Talmud levavam muito mais a sério os favores recebidos. Eles enxergavam que até mesmo pequenos favores eram verdadeiros tesouros que eles haviam recebido. Para nós, atos que fizeram com que eles pedissem afastamento do julgamento são tão insignificantes que passariam desapercebidos. Mas não para estes grandes sábios, pessoas que trabalhavam a característica de apreciar o que os outros fazem por eles, que consideravam mesmo as menores bondades como sendo valiosas, a ponto de influenciá-los em seu julgamento.

 

Explica o Rav Yssocher Frand que muitos problemas da nossa sociedade emanam justamente da falta de Hakarat Hatov. Maridos consideram os pequenos favores do dia-a-dia que suas esposas fazem a eles como sendo "naturais", assim como as esposas consideram "naturais" os favores feitos pelos maridos. Muitas vezes consideramos os favores que os outros nos fazem como sendo apenas a obrigação deles e, com isso, deixamos de reconhecer e agradecer. Cada um está sempre esperando que a outra parte "cumpra o seu papel"


Se cada esposa ou marido dessem mais consideração aos favores recebidos, assim como os grandes sábios do Talmud faziam, certamente teríamos casamentos muito mais felizes e estáveis, pois cada um sentiria o reconhecimento pelo que o outro faz por ele e, automaticamente, sentiria a obrigação de retribuir. Ele é válido na relação entre patrões e empregados, ou em qualquer outro relacionamento humano. Devemos parar de enxergar as coisas que recebemos como sendo obrigação dos outros, e começar a nos sentir endividados por tudo o que recebemos de bom.

 

O segredo de uma vida harmônica é a pessoa sentir como se não merecesse nada de ninguém, e que tudo o que recebe é apenas um ato de bondade do próximo. Se valorizarmos o que o outro faz por nós, ao invés de considerarmos como parte dos nossos direitos, viveremos muito melhor. Se aprendermos a apreciar os favores que os outros fazem por nós, por menores que sejam, o mundo será um lugar muito melhor.

                                                                                                                                                                        R' Efraim Birbojm

Texto adaptado por Francisco Adriano Germano

 

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