A parashá Shoftim (Juízes)
é a fonte clássica dos três tipos de liderança no Judaísmo, chamados pelos
Sábios de “três coroas”: do sacerdócio, realeza e Torá. [1]
O poder, na arena humana, deve
ser dividido e distribuído, não concentrado em uma única pessoa ou cargo. No
Israel bíblico, havia reis, sacerdotes e profetas. Os reis tinham poder secular
ou governamental. Os sacerdotes eram os líderes no domínio religioso,
presidindo o serviço no Templo e outros ritos e dando decisões sobre assuntos
relacionados com santidade e pureza. Os profetas foram ordenados por Elohim a
criticar as corrupções do poder e chamar o povo de volta à sua vocação
religiosa sempre que se afastasse dela.
Nossa parashá lida com todos os
três papéis. Sem dúvida, porém, o que mais chama a atenção é a seção sobre
reis, por vários motivos. Em primeiro lugar, este é o único mandamento na Torá sobre
um tema recorrente às outras nações:
Quando entrares na terra que
te dá o SENHOR teu Elohim, e a possuíres, e nela habitares, e disseres: Porei
sobre mim um rei, assim como têm todas as nações que estão em redor de mim. (Deuteronômio
17:14)
Normalmente, na Torá, os
israelitas são ordenados a serem diferentes. O fato desse comando ser uma
exceção foi suficiente para sinalizar aos comentaristas ao longo dos tempos que
existia uma certa ambivalência sobre a ideia de monarquia como um todo.
Em segundo lugar, a passagem é
surpreendentemente negativa. Diz-nos o que o rei não deve fazer, em vez do que ele
deve fazer. Ele não deve "adquirir um grande número de cavalos",
ou "tomar muitas esposas" ou "acumular grandes
quantidades de prata e ouro" (Deuteronômio 17:16-17). Essas são
as tentações do poder e, como sabemos pelo resto do Tanach, até o maior - o
próprio Rei Salomão - foi vulnerável a elas.
Terceiro, consistente com a ideia
judaica fundamental de que liderança é serviço, não domínio ou poder ou status
ou superioridade, o rei é ordenado a ser humilde: ele deve ler constantemente a
Torá “para que ele possa aprender a reverenciar o SENHOR teu Elohim [...] e
não se considerar melhor do que seus companheiros” (Deuteronômio 17:
19-20). Não é fácil ser humilde quando todos estão se curvando diante de você e
quando você tem o poder de vida ou morte sobre seus súditos.
Daí a variação extrema entre os comentaristas
quanto a monarquia ser uma instituição boa ou perigosa. Maimônides afirma que a
nomeação de um rei é uma obrigação. Ibn Ezra que é uma permissão. Abarbanel que
é uma concessão e Rabbenu Bachya que é uma punição.
Existe, porém, uma dimensão
positiva e excepcionalmente importante da realeza. O rei recebe a ordem de
estudar constantemente:
E o terá consigo,
e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer ao SENHOR seu Elohim,
para guardar todas as palavras desta lei, e estes estatutos, para cumpri-los; Para
que o seu coração não se levante sobre os seus irmãos, e não se aparte do
mandamento, nem para a direita nem para a esquerda; para que prolongue os seus
dias no seu reino, ele e seus filhos no meio de Israel. (Deuteronômio 17:19,20)
Mais tarde, no livro que leva seu
nome, o sucessor de Moisés, Josué, é ordenado em termos muito semelhantes:
Não se aparte da
tua boca o livro desta lei; antes medita nele dia e noite, para que tenhas
cuidado de fazer conforme a tudo quanto nele está escrito; porque então farás
prosperar o teu caminho, e serás bem-sucedido. (Josué 1:8)
Líderes aprendem. Esse é o
princípio em jogo aqui. Sim, eles têm conselheiros, anciãos, sábios e
literatos. E sim, os reis bíblicos tinham profetas - Samuel para Saul, Natã
para Davi, Isaías para Ezequias e assim por diante - para levar-lhes a palavra
do Senhor. Mas aqueles sobre os quais gira o destino da nação não podem delegar
a tarefa de pensar, ler, estudar e lembrar. Eles não têm o direito de dizer:
tenho assuntos de estado com que me preocupar, portanto não tenho tempo para
livros. Os líderes devem ser eruditos, Bnei Torá, “Filhos do Livro”,
se quiserem dirigir e liderar o povo do Livro.
Os dois maiores reis do antigo
Israel, Davi e Salomão, foram ambos autores, Davi dos Salmos, Salomão (de
acordo com a tradição) de O Cântico dos Cânticos, Provérbios e Kohelet/Eclesiastes.
A palavra-chave bíblica associada a reis é chochmah, "sabedoria".
Salomão em particular era conhecido por sua sabedoria:
Quando todo o
Israel ouviu o veredito que o rei havia dado, eles ficaram maravilhados com o
rei, porque viram que ele tinha sabedoria de Elohim para administrar a justiça.
(1 Reis 3:12)
A sabedoria de Salomão era maior
do que a sabedoria de todo o povo do Oriente, e maior do que toda a sabedoria
do Egito... De todas as nações vinham as pessoas para ouvir a sabedoria de Salomão,
enviada por todos os reis do mundo, que tinham ouvido falar sua sabedoria. (1
Reis 5: 10-14)
Quando a Rainha de Sabá viu toda
a sabedoria de Salomão ela ficou maravilhada. Ela disse ao rei:
E disse ao rei: Era verdade a
palavra que ouvi na minha terra, dos teus feitos e da tua sabedoria. E eu não
cria naquelas palavras, até que vim e os meus olhos o viram; eis que não me
disseram metade; sobrepujaste em sabedoria e bens a fama que ouvi. (1 Reis
10:6,7)
O mundo inteiro buscou uma audiência
com Salomão para ouvir a sabedoria que Elohim colocara em seu coração. (1 Reis
10:24)
Devemos notar que chochmah
(sabedoria), significa algo ligeiramente diferente da Torá, que é mais
comumente associada a Sacerdotes e Profetas do que a Reis. Chochmah
inclui sabedoria humana, que é universal, ao invés de uma herança especial dos
judeus e do judaísmo. Um Midrash declara:
Se alguém lhe
disser: Há sabedoria entre as nações do mundo, acredite. Se eles disserem: Há
Torá entre as nações do mundo, não acredite. [2]
Em termos gerais e
contemporâneos, chochmah se refere às ciências e humanidades - a tudo o
que nos permite ver o universo como obra de Elohim e a pessoa humana como
imagem de Elohim. A Torá é a herança moral e espiritual específica de Israel.
O caso de Salomão é
particularmente comovente porque, apesar de toda a sua sabedoria, ele não foi
capaz de evitar as três tentações apresentadas em nossa parashá: ele adquiriu muitos
cavalos, teve muitas esposas e acumulou uma grande riqueza. Sabedoria sem Torá
não é suficiente para salvar um líder das corrupções do poder.
Embora poucos de nós estejamos
destinados a ser reis, presidentes ou primeiros-ministros, existe um princípio
geral em jogo. Líderes aprendem. Eles leem. Eles estudam. Eles demoram para se
familiarizar com o mundo das ideias. Só assim eles ganham a perspectiva de
serem capazes de ver mais longe e com mais clareza do que os outros. Ser um
líder piedoso significa gastar tempo para estudar Torá e chochmah: chochmah
para entender o mundo como ele é, Torá para entender o mundo como deveria ser.
Os líderes nunca devem parar de
aprender. É assim que eles crescem e ensinam outros a crescer com eles.
Rabino Lord Jonathan
Sacks
NOTAS
[1] Mishná Avot 4:13. Maimonides, Mishneh Torá, Hilchot
Talmud Torá, 3:1.
[2] Eichah Rabbati 2:13.
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