Débora era uma jovem de
excelentes traços de caráter. Ela havia recém-casado com Chaim, um jovem
estudante de Torá, e estava muito feliz. Porém, um incidente simples a deixou
extremamente incomodada. Em Israel, cada um precisa levar seu próprio lixo para
a lixeira pública, que fica na rua. Como o lixo estava pesado, Débora pediu
para que Chaim a ajudasse. Parecia um pedido simples, mas a resposta dele a deixou
muito chateada:
- Desculpe, querida, não sei
se posso fazer isto - disse Chaim - Eu sou um estudante de Torá, não acho que é
adequado à minha imagem carregar o lixo na rua.
Débora não conseguia acreditar
no que estava escutando. Que decepção! Mas para não iniciar uma discussão,
simplesmente disse para ele:
- Por que você não pergunta ao
seu rabino o que é correto fazer?
Chaim concordou. Ele era aluno
de um grande rabino, um homem muito sábio, respeitado e temente a Elohim.
Naquela mesma noite Chaim foi procurar seu rabino e contou a ele o que havia
acontecido. Explicou o seu lado, de que ele não achava adequado alguém que se
dedicava ao estudo da Torá ter que levar o lixo para fora, em público. O rabino
escutou com atenção a pergunta de Chaim e, após alguns momentos de reflexão,
disse:
- Chaim, você tem razão. Acho
que tirar o lixo para ajudar sua esposa não é algo adequado ao seu nível
espiritual. Na minha opinião, pela sua honra, como você é um grande estudante
de Torá, você está isento de fazer isto.
Chaim não escondeu o sorriso
ao escutar as palavras do rabino. Voltou feliz para casa, contente por estar
com a razão. Orgulhoso, contou para a esposa que o rabino achava que ele estava
isento de ajudá-la a tirar o lixo.
Na manhã seguinte, logo cedo,
alguém bateu na porta. Quem poderia ser àquela hora da manhã? Quando Chaim
abriu, se assustou. Seu rabino estava parado na porta. Com um sorriso, ele
disse:
- Bom dia, Chaim. Você poderia
me mostrar onde está o lixo? Eu vim retirá-lo para você.
- Mas Rav, não estou
entendendo - questionou Chaim - Você me falou ontem que não era adequado para
alguém no meu nível de Torá tirar o lixo!
- No seu nível, tirar o lixo é
considerado falta de honra. Porém, para alguém no meu nível, acho que isto não
é nenhum problema...
A Torá deve nos ajudar a
crescer, mas não acharmos que somos melhores que os outros.
A Parashá Haazinu
(literalmente "Escute"), traz um "Cântico" de
Moshé (Moisés) para louvar o Criador do mundo, expressando o reconhecimento da
total harmonia da Criação Divina. Há um versículo muito interessante neste
Cântico: "Meus ensinamentos devem chegar como chuva até vocês"
(Devarim/Deuteronômio 32:2). Em outras palavras, Moshé está comparando a Torá
com a chuva.
Em muitos lugares a Torá é
comparada com a água, por muitas semelhanças que existem entre as duas. Por
exemplo, a água somente se acumula nos lugares mais baixos, enquanto a Torá
somente se acumula nas pessoas verdadeiramente humildes. Outra semelhança é que
a pessoa pode ficar alguns dias sem comer, porém não pode passar alguns dias
sem beber água, pois seu corpo desidrata e ela morre. Da mesma maneira, ainda
que a pessoa consiga sustento material, se ela não se dedica ao estudo da Torá,
vai acabar "desidratando" espiritualmente. Porém, qual é a
semelhança entre a Torá e a chuva?
O Rav Chaim Shmuelevitz zt"l
(Lituânia, 1902 - Israel, 1979) explica que a chuva é a responsável por fazer
as plantações crescerem. Mas a chuva não produz os frutos, ela somente
potencializa a capacidade de crescimento e desenvolvimento das plantas. E como
ela atua apenas como um agente potencializador, a chuva faz crescer somente o
que já estava semeado.
Isto significa que, se a pessoa
arou o campo e plantou vegetais e frutas saudáveis e deliciosos, a chuva vai
ajudar a desenvolvê-los. Porém, se a pessoa não arou seu campo e não fez
nenhuma semeadura, a chuva transforma o campo em um grande lamaçal. E a
situação pode ser ainda pior caso a pessoa descuide do seu campo e permita que
se espalhem cogumelos venenosos e ervas daninhas, pois a chuva traz umidade e
ajuda no desenvolvimento e crescimento de coisas nocivas.
O estudo da Torá faz a
pessoa crescer. Porém, para onde vai este crescimento, isto é, se será algo
positivo ou negativo vai depender do caráter da pessoa, do quanto ela se
esforçou para anular suas tendências ruins, ou seja, as "ervas
daninhas" como o orgulho, a raiva e a preguiça, e o quanto ela
investiu para semear boas tendências, como a humildade, a tranquilidade e a
agilidade.
Isto significa que, se a
pessoa possui características ruins e não se esforça para consertar e se livrar
delas, não apenas o estudo da Torá não vai ajudá-la, como também pode até mesmo
piorar a situação. Por exemplo, se uma pessoa é arrogante e sente que é
melhor do que os outros, certamente ela tenderá a ficar mais arrogante ao
adquirir mais conhecimento, e utilizará seu conhecimento para diminuir e
menosprezar outras pessoas. Se uma pessoa é cruel, quanto mais sabedoria tiver,
mais dor vai causar aos outros. Se uma pessoa deseja honra e poder, ao adquirir
mais conhecimento, vai se sentir mais justificada a controlar e manipular os
outros, exigindo que todos reconheçam sua grandeza. E se a pessoa é egoísta,
vai utilizar seu conhecimento para se tornar ainda mais centrada apenas em suas
próprias necessidades.
Por outro lado, se a pessoa tem
bons traços de caráter, vai utilizar seu conhecimento de Torá para ajudar o
maior número de pessoas que puder e da maneira mais completa. Não apenas se
contentará em fazer Chessed (bondade), mas se esforçará para alcançar o
nível de Ahavat Chessed (amor pela bondade). Além disso, quando mais
conhecimento adquirir, estará mais disposta a compartilhar sua sabedoria com os
outros. Ela se tornará mais humilde, saberá respeitar todas as pessoas e a
aprender com todos à sua volta, conforme ensinam os nossos sábios: "Quem
é sábio? Aquele que aprende com todas as pessoas" (Pirkei Avót 4:1),
inclusive aqueles que sabem menos do que ele. Quem tem bons traços de caráter,
ao estudar mais Torá, se tornará mais elevado. Seu comportamento adequado em
relação às outras pessoas, sempre com bondade e humildade, será uma enorme
santificação do Nome do ETERNO.
O estudo da Torá traz santidade e
nos purifica. Porém, sem um trabalho paralelo dos nossos traços de caráter, a
pessoa nunca atingirá seu verdadeiro potencial. Isto era algo muito claro para
o Rav Avraham Yeshayahu Kerelitz zt"l (Bielorússia, 1878 - Israel, 1953),
mais conhecido como Chazon Ish. Um rabino certa vez estava conversando com ele
sobre Shiduchim [1]. O rabino tinha um sobrinho e queria apresentá-lo a
uma parente do Chazon Ish. O rabino ficou por alguns minutos elogiando as
qualidades intelectuais do rapaz, ressaltando o quanto ele era esforçado nos
estudos, começando cedinho pela manhã e terminando tarde da noite, quase sem
interrupções. Após escutar todos aqueles elogios, o Chazon Ish fez apenas uma
pergunta ao rabino: "Ele também será um bom marido?". Isto
significa que apenas estudarmos Torá, sem nos esforçarmos para melhorar nosso
caráter, não é garantia de que seremos boas pessoas.
No Yom Kipur, o dia mais sagrado
do ano, tivemos a incrível oportunidade de pedirmos perdão a Elohim por todos
os erros cometidos durante o ano. E uma das principais Mitzvót (mandamentos)
de Yom Kipur é o Vidui, a confissão das nossas transgressões, que repetimos por
10 vezes [2] neste dia tão sagrado. Porém, ao lembrarmos dos erros que
cometemos durante o ano, percebemos que repetimos praticamente os mesmos erros
dos anos anteriores. Se estamos arrependidos e decididos a mudar, por que
voltamos a cometer sempre os mesmos erros?
Uma resposta possível é que
normalmente as transgressões são, na realidade, apenas uma consequência dos
nossos traços de caráter negativos. Por exemplo, durante o ano perdemos
diversas vezes o horário das Tefilót (Orações), falamos Lashon Hará
(Falar mal dos outros/Fofoca) e somos desonestos nos nossos negócios. Por que
tropeçamos tanto nestas transgressões? Perdemos as orações da manhã pois não
conseguimos vencer a nossa preguiça. Falamos tanto Lashon Hará pois não
conseguimos vencer o nosso orgulho e, por sentirmos que somos melhores do que
os outros, achamos que tínhamos o direito de julgá-los. Acabamos sendo
desonestos pois não conseguimos vencer nossos desejos, querendo sempre mais.
Se queremos evitar as
transgressões, precisamos consertá-las diretamente na sua essência, que são os
traços de caráter negativos. Para isto, são necessários muitos aconselhamentos,
reflexões e estudo de Mussar (Ética) [3]. Mudar um traço de caráter não é
algo simples, mas é o único caminho para consertarmos os nossos erros e
alcançarmos o nosso potencial. Somente desta maneira este terá sido o último Yom
Kipur no qual pedimos a Elohim perdão exatamente pelas mesmas transgressões dos
anos anteriores.
R' Efraim Birbojm
Texto corrigido e adaptado
por Francisco Adriano Germano
Notas
[1] Shidduch ou shiduch (no
hebraico שידוך,
pl. shid[d]uchim שידוכים)
dentro do judaísmo significa promover um "encontro" entre um homem e
uma mulher, de modo que venham a se casar.
[2] Viduí (confissão - no hebraico:
וִדּוּי,
transliterado: widduy, viddui ) é uma etapa no processo de expiação durante a
qual um judeu admite ter cometido um pecado diante de Elohim. Nos pecados entre
um judeu e Elohim, a confissão deve ser feita sem a presença de outros (O
Talmud chama a confissão na frente de outro uma demonstração de desrespeito).
Por outro lado, a confissão relativa aos pecados cometidos a outra pessoa pode
ser feita publicamente e, de fato, Maimônides chama tal confissão de "imensamente
louvável".
[3] Esta é a conclusão que o
autor do texto acredita. Porém, para os seguidores do Messias Yeshua, a mudança
de comportamento se inicia com a sua renúncia aos valores e princípios pessoais,
substituindo-os pela confiança no Messias e a observância dos mandamentos do
ETERNO. “Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos
filhos de Deus, aos que creem no seu nome”. (João 1:12) “E, ouvindo eles
isto, compungiram-se em seu coração, e perguntaram a Pedro e aos demais
apóstolos: Que faremos, homens irmãos? E disse-lhes Pedro: Arrependei-vos, e
cada um de vós seja batizado em nome de Yeshua HaMashiach, para perdão dos
pecados; e recebereis o dom da Ruach HaKodesh (Espírito Santo)”. (Atos
2:37,38)
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