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QUAL O TEXTO GREGO ORIGINAL DO NOVO TESTAMENTO?



Introdução [1]

 

Que existe um problema concernente à identificação da exata redação [2] original do Novo Testamento em grego, fica evidente pelo fato de terem sido impressas um considerável número de edições dele, competindo umas com as outras. Por “competindo” quero dizer que elas não concordam uma com as outras em relação a quais são as exatas palavras do texto. Tal discordância é possível porque não há sequer dois dos antigos manuscritos em grego (cópias escritas à mão) por nós conhecidos que sejam absolutamente idênticos em cada palavra, e temos que depender dessas cópias porque os Autógrafos dos Apóstolos (isto é, os documentos originais) não mais existem. (Eles se destruíram pelo muito uso, provavelmente bem antes de 200 DC.)

 

Em resumo, temos pela frente o desafio de, a partir dos manuscritos sobreviventes, identificarmos a redação do texto original, mesmo não havendo dois deles em perfeita concordância. Nesta tarefa podemos também apelar para cópias das antigas Versões (traduções para sírio, latim, cóptico etc.) e para os escritos sobreviventes dos antigos Pais da Igreja (onde eles citam ou se referem a passagens do Novo Testamento).

 

Existem mais de 5000 manuscritos (conhecidos) do Novo Testamento em grego. Eles variam em tamanho desde um pequeno fragmento com partes de dois versos até Novos Testamentos completos. Variam, quanto a data, indo desde o segundo século até ao décimo sexto [3], e provêm de todo o mundo Mediterrâneo. Contêm várias centenas de milhares de leituras [4] variantes (diferenças no texto). A imensa maioria destas é constituída de enganos quanto à ortografia ou de outros erros óbvios, devidos a descuido ou inabilidade da parte dos copistas. No entanto, ainda restam muitos milhares de variantes que precisam ser avaliadas à medida que procuramos identificar a exata redação do texto original. Como melhor proceder em tamanho empreendimento?

 

Certamente não sou o primeiro a se esforçar para prover tal resposta. Numerosas alternativas têm sido propostas através dos anos. Elas tendem a formar dois ajuntamentos ou linhas, e essas linhas diferem substancialmente uma da outra. Em termos muito amplos e simplificados podemos dizer que uma das linhas costuma seguir a grande maioria (raramente abaixo de 80% e usualmente acima de 95%) dos manuscritos gregos, os quais estão em concordância essencial entre si mesmos, mas não datam de antes do quinto século, enquanto a outra linha costuma seguir um pequeno punhado (frequentemente menos de 10%) dos manuscritos gregos mais antigos (do terceiro, quarto e quinto séculos), os quais não apenas discordam da maioria, mas também frequentemente se contradizem entre si. Essa segunda linha vem dominando, de forma geral, o mundo da erudição durante os últimos 110 anos.

 

A mais visível consequência e prova desse controle pode ser percebida nas traduções do Novo Testamento feitas durante esses 110 anos, para o inglês [e muitas outras línguas também, inclusive o português]. Virtualmente cada uma dessas traduções reflete uma forma de texto baseada nos poucos manuscritos gregos mais antigos. Em contraste com eles, a “King James Version” (AV) e a “New King James Version” (NKJV) [5] refletem uma forma do texto baseado nos numerosos manuscritos gregos mais recentes.

 

Assim, a diferença fundamental entre, de um lado, o Novo Testamento nas “American Standard Version” [ASV], “Revised Standard Version” [RSV], “New English Bible” [NEB], “Today’s English Version” [TEV], “New American Standard Bible” [NASB], “New International Version” [NIV – em português “Nova Versão Internacional”, NVI] [6] e, de outro lado, o Novo Testamento nas AV e NKJV [e, em português, na Almeida Revista e Corrigida Fiel da SBTB, já que as “Revistas e Corrigidas”, após 1937 representam um meio caminho andado entre o TR e o texto “crítico”], é que estes dois lados estão baseados em diferentes formas do texto em grego. (Há mais de 5500 diferenças entre estas duas formas.) [7]

 

Até o ponto em que você possa estar consciente desses fatos, talvez tenha aceitado como razoáveis as alegações usualmente feitas no sentido de que a substancial melhora no nosso estoque de materiais disponíveis (manuscritos em grego e outras testemunhas) e no nosso entendimento do que fazer com eles (os princípios da crítica textual), tornaram possível uma aproximação mais acurada do texto original do que aquela que foi alcançada há várias centenas de anos atrás. As declarações encontradas nos prefácios de algumas versões dão ao leitor a impressão de que esta melhora está refletida nas suas traduções [fazendo-as superiores]. Por exemplo, o prefácio da Revised Standard Version, página ix, diz:

 

O Novo Testamento da Versão do Rei Tiago baseou-se em um texto grego que foi desfigurado por equívocos, contendo os erros acumulados em quatorze séculos do processo manual de copiar manuscritos [isto não é verdadeiro: quase todas as leituras adotadas no TR são antigas] [...] possuímos, agora, muito mais manuscritos antigos do Novo Testamento, e estamos muito mais bem equipados para procurar recuperar as palavras originais do texto em grego.

 

E o prefácio da “New International Version”, página viii, diz:

 

O texto em grego usado na tradução foi um texto eclético. Nenhuma outra peça de literatura antiga tem tanto apoio de manuscritos quanto o Novo Testamento. Onde os textos existentes diferem, os tradutores escolheram uma entre as leituras, de acordo com os princípios de crítica textual. Notas de rodapé: chamam a atenção para aqueles locais onde há incerteza sobre em que consistia o texto original.

 

Mas, se você tem usado um bom número de versões modernas, você já pode ter notado algumas coisas que talvez lhe tenham intrigado, desconcertaram, ou mesmo o angustiaram. Estou pensando no grau em que elas diferem entre si mesmas, na incerteza quanto à identidade do texto que é refletida nas muitas notas de rodapé referentes às variantes textuais, e na natureza e extensão das divergências que compartilham contra a Versão do Rei Tiago [e a Almeida Revista e Corrigida Fiel].

 

A maioria das diferenças entre as versões modernas deve-se, presumivelmente, às diferenças em estilo e técnicas de tradução. No entanto, embora elas estejam essencialmente em concordância quanto ao texto grego que usaram, em oposição a aquele em que se baseia a AV [e a ACF], não há sequer duas dessas traduções modernas que se baseiem em textos gregos [realmente] idênticos. Ademais, nem sempre os tradutores têm estado inteiramente certos quanto às exatas palavras do texto [grego] — enquanto algumas versões têm poucas notas sobre variantes textuais, outras têm muitas, e mesmo nestes casos, de modo algum, todas as dúvidas têm sido registradas [8]. Enfim, ninguém no mundo, hoje, realmente sabe ainda qual foi a exata redação original do texto grego do Novo Testamento.

 

Essa constatação pode gerar uma inquietude nos recessos da sua mente. Por que ninguém está totalmente seguro, se temos tantos materiais e tanta sabedoria? Bem, porque a presente “sabedoria”, são os “princípios da crítica textual” em voga, que podem ser sumariados em duas máximas: (1) escolha a leitura que melhor explique a origem das variantes oponentes, e (2) escolha a variante mais provável de ter sido escrita pelo autor.

 

Não é de se admirar que Bruce Metzger [9] diga:

 

“É compreensível que em alguns casos diferentes estudiosos cheguem a diferentes avaliações da significância da evidência.” [10]

 

Uma rápida inspeção dos escritos dos estudiosos das questões textuais sugere que “em alguns casos” citados por Metzger é decididamente uma diminuição da verdade. De fato, até mesmo os estudiosos irão vacilar, como demonstrado quando a “United Bible Societies”, na terceira edição do texto grego que produz, introduziu “mais de quinhentas mudanças” em relação à segunda edição (a mesma comissão de cinco redatores preparou ambas) [11].

 

Ademais, é evidente que as máximas acima não podem ser aplicadas com segurança. Ninguém que hoje vive sabe ou pode saber o que realmente aconteceu. Segue-se que enquanto os materiais textuais forem manipulados desta maneira não iremos jamais estar seguros de qual a redação exata do texto original em grego [12].

 

Não é surpreendente que estudiosos trabalhando dentro de tal arcabouço digam o mesmo. Por exemplo, Robert M. Grant, um bem conhecido estudioso das questões bíblicas, diz:

 

O objetivo primário do estudo textual do Novo Testamento continua sendo a recuperação daquilo que os seus escritores escreveram. Já temos sugerido que alcançar este objetivo é extremamente próximo de ser impossível. Portanto, temos que nos contentar com aquilo que Reinhold Niebuhr e outros têm chamado, em outros contextos, de uma ‘possibilidade impossível’.[13]

 

E Kenneth W. Clark, um outro bem conhecido professor titular-catedrático e estudioso do texto [neotestamentário], comentando sobre P75:

 

“... o papiro exibe vividamente um estado fluido do texto ao redor do ano 200 DC. Uma tal liberdade no trabalho dos copistas sugere que o texto do evangelho era pouco mais estável do que a tradição oral, e que nós podemos estar perseguindo a miragem fugidia do ‘texto original’.” [14]

 

Cinquenta anos atrás, Grant tinha dito: “é geralmente reconhecido que o texto original da Bíblia não pode ser recuperado.” [15]

 

Tais colocações me deixam intranquilo. Se a redação original está para sempre perdida, o que estamos usando? As consequências de tal admissão têm um alcance, a meu ver, que se faz obrigatória uma completa e meticulosa revisão das evidências. Será que os fatos realmente forçam uma mente honesta à conclusão expressa por Grant?

 

Wilbur Norman Pickering

Notas

 

[1] Uma grande parte da pesquisa subjacente a este livro foi realizada em conexão com a tese de mestrado que submeti ao Seminário Teológico de Dallas, em 1968, com o título “An Evaluation of the Contribution of John William Burgon to New Testament Textual Criticism.” Minha tese foi subsequentemente publicada em forma editada [e não totalmente integral] em True or False? [livro] editado por D. Otis Fuller, (Grand Rapids: Grand Rapids International Publishers, 1972) — o texto completo da tese aparece na 2ª edição [desse livro de Fuller], em 1975. Nesta presente obra tenho reutilizado algum material da minha tese, com permissão de ambas as entidades.

[2] “Redação” abrange não só as palavras como a correta sequência e grafia delas.

[3] Existem mais de cem do século dezessete e outros quarenta do século dezoito, mas, como várias edições impressas do N.T. em grego apareceram durante o século dezesseis, presume-se que tais manuscritos sejam de pouco interesse.

[4] Nota dos tradutores: Em crítica textual “variante” significa qualquer alteração, grande ou pequena, na redação dum texto, a partir da redação tida como padrão. “Leitura” significa tanto a variante quanto a forma “padrão” com a qual concorre.

[5] Nota dos tradutores: Todas as vezes que o autor se referir às excelentes qualidades da King James Version, poderíamos também dizer o mesmo daquelas Bíblias em português que se basearam essencial e fielmente no mesmo texto grego daquela AV: as Bíblias conhecidas como Almeida 1681, 1753, 1847; e Almeida Corrigida Fiel (ACF), da Sociedade Bíblica Trinitariana.

[6] Nota dos tradutores: Todas as vezes que o autor se referir aos inúmeros e gravíssimos defeitos dessas Bíblias modernas (em inglês), poderíamos também dizer o mesmo daquelas Bíblias modernas, em português, que se basearam essencialmente na mesma família de textos críticos, em grego. Isto é, as Bíblias conhecidas como Almeida Edição Contemporânea (AEC), Almeida Revista e Atualizada (ARA), Almeida Revista e Melhorada (ARM), Nova Versão Internacional (NVI), Biblia Viva (BViva), Bíblia na Linguagem de Hoje (BLH), e todas as Bíblias ecumênicas, dos romanistas, dos Testemunhas de Jeová e de outras seitas.

[7] F.H.A. Scrivener, ed., The New Testament in the Original Greek, together with the variations adopted in the Revised Version (Cambridge: Cambridge University Press,1880). A despeito das diferenças entre as edições impressas do texto em grego geralmente usadas [tanto do T. Receptus como do T. Crítico], todas elas concordam sobre a identidade [isto é, quais são as exatas palavras originais] de cerca de 90 porcento do texto.

[8] Por exemplo, Tasker diz dos tradutores da NEB: “Cada membro do Painel estava consciente de que algumas das decisões deste [Painel] não eram em nenhum sentido finais nem [bastante] confiáveis, mas, no máximo, conclusões inseguras...” The Greek New Testament [este é o texto traduzido pela New English Bible] ed. R.V.G. Tasker (Oxford: Oxford University Press, 1964), pag. viii. Ver também B.M. Metzger, Historical and Literary Studies, NTTS, VIII (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1968), pag. 160-61.

[9] Bruce M. Metzger é um dos estudiosos do Novo Testamento considerado do mais alto nível, na América do Norte; tem sido professor titular-catedrático na Universidade de Princeton, por muitos anos; e é o autor de muitas obras eruditas, inclusive do livro-texto padrão, The Text of the New Testament.

[10] B.M. Metzger, The Text of the New Testament (London: Oxford University Press, 1964), pag. 210.

[11] K. Aland, M. Black, C.M. Martini, B.M. Metzger, and A. Wikgren, eds., The Greek New Testament, third edition (New York: United Bible Societies, 1975), pag. viii. Embora esta [terceira] edição seja datada de 1975, a obra Commentary, de Metzger, baseada nela, foi publicada em 1971. A segunda edição data de 1968. Assim, parece que, no espaço de três anos (1968-1971), sem nenhuma acumulação significativa de novas evidências, o mesmo grupo de cinco estudiosos mudou de opinião em mais de quinhentos locais. É difícil deixarmos de suspeitar que eles estavam conjeturando [isto é, “chutando no escuro”].

[12] Mesmo onde há testemunho unânime sobre as palavras do texto, os cânones da evidência interna não impedem a possibilidade de que o testemunho unânime possa estar errado. Uma vez que evidência interna é aceita como a maneira de determinar qual é o texto, então, em princípio, não há mais base para objetar contra emendas conjeturais. Daí, nenhuma parte do Texto estará segura. (Mesmo que seja exigido que uma leitura proposta seja atestada por pelo menos um manuscrito, um novo papiro pode ser descoberto amanhã, com novas variantes desafiando o testemunho unânime dos demais, e assim por diante).

[13] R.M. Grant, A Historical Introduction to the New Testament (New York: Harper and Row, 1963), pag. 51.

[14] K.W. Clark, “The Theological Relevance of Textual Variation in Current Criticism of the Greek New Testament,” Journal of Biblical Literature, LXXXV (1966), pag. 15.

[15] Grant, “The Bible of Theophilus of Antioch,”Journal of Biblical Literature, LXVI (1947), pag. 173. Para uma declaração mais pessimista, ver E.C. Colwell, “Biblical Criticism: Lower and Higher,” Journal of Biblical Literature, LXVII (1948), pag. 10-11. Ver também G. Zuntz, The Text of the Epistles, 1953, pag. 9; K. and S. Lake, Family 13 (The Ferrar Group), 1941, pag.vii; F.C. Conybeare, History of New Testament Criticism, 1910, pag. 129.

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