Nossa parashá começa com uma
proposição aparentemente simples:
Quando Faraó deixou o povo ir, Elohim
não os guiou na estrada através da terra dos filisteus, embora isso fosse mais
curto, pois Elohim disse: "Se enfrentarem uma guerra, poderão mudar de
ideia e voltar ao Egito". Então Elohim os guiou pela estrada deserta
em direção ao Mar Vermelho. Os israelitas subiram do Egito preparados para a
batalha. (Êxodo 13:17-18)
Elohim não levou o povo à Terra
Prometida pela rota costeira, que teria sido a mais direta. A razão apresentada
é que era uma estrada tão importante que constituía o caminho principal a
partir do qual o Egito poderia ser atacado por forças do noroeste, como o
exército hitita. Os egípcios estabeleceram uma série de fortes ao longo do
caminho, que os israelitas considerariam inexpugnáveis.
No entanto, se aprofundarmos nessa
decisão levantar-se-á algumas questões:
Primeiro: vemos que
a rota alternativa que eles seguiram foi potencialmente ainda mais traumática. Elohim
os conduziu pela estrada deserta em direção ao Mar Vermelho. O resultado, como
logo descobrimos, é que os israelitas, quando viram os carros egípcios
perseguindo-os à distância, não tinham para onde ir. Eles estavam apavorados.
Eles não foram poupados do medo da guerra. Daí a primeira pergunta: por que o
Mar Vermelho? Em face disso, era a pior de todas as rotas possíveis.
Segundo: se Elohim
não queria que os israelitas enfrentassem a guerra, e se Ele acreditava que
isso levaria o povo a querer retornar ao Egito, por que os israelitas deixaram
os chamushim "armados" ou "prontos para a
batalha"?
Terceiro: se Elohim
não queria que os israelitas enfrentassem a guerra, por que provocou o Faraó a
persegui-los? O texto diz isso explicitamente:
E endurecerei o
coração do Faraó, e ele os perseguirá. Mas, por Faraó e por todo o seu
exército, conquistarei glória por mim mesmo, e os egípcios saberão que eu sou
YHWH. (Êxodo 14:4)
Três vezes neste capítulo, somos
informados de que Elohim endureceu o coração de Faraó (Êxodo 14:4, 8, 17).
A Torá explica essa motivação de "Vou
ganhar glória para Mim". A derrota do exército egípcio no mar se
tornaria um lembrete eterno do poder de Elohim: "Os egípcios saberão
que eu sou YHWH". O Egito pode perceber que existe uma força mais
poderosa do que carros, exércitos e forças militares. Mas a abertura de nossa
parashá sugeriu que Elohim se preocupava principalmente com os sentimentos dos
israelitas - não com Sua glória ou com a crença dos egípcios. Se Elohim queria
que os israelitas não vissem guerra, como afirma o versículo inicial, por que
orquestrou que testemunhassem esse ataque no mar?
Quarto: Elohim não
queria que os israelitas tivessem motivos para dizer: "Voltemos ao
Egito". No entanto, no Mar Vermelho, o que disseram a Moisés foi algo
muito próximo disso:
Foi porque não
havia sepulturas no Egito que você nos trouxe para o deserto para morrer? O que
você fez conosco ao nos tirar do Egito? Não lhe dissemos no Egito: 'Deixe-nos
em paz; deixe-nos servir aos egípcios? Teria sido melhor servir os egípcios do
que morrer no deserto! (Êxodo 14:11-12)
Quinto: Elohim
claramente queria que os israelitas desenvolvessem a autoconfiança que lhes
daria forças para travar as batalhas que teriam que travar para conquistar a
Terra Santa. Porque então, ele os trouxe para uma situação no mar onde eles
tiveram que fazer exatamente o oposto, deixando tudo para Elohim:
Moisés, porém,
disse ao povo: Não temais; estai quietos, e vede o livramento do Senhor, que
hoje vos fará; porque aos egípcios, que hoje vistes, nunca mais os tornareis a
ver. O Senhor pelejará por vós, e vós vos calareis. (Êxodo 14:13,14)
O milagre que se seguiu ficou tão
gravado na mentalidade judaica que recitamos a música no mar em nosso culto
diário. A divisão do mar foi, a seu modo, o maior de todos os milagres. Mas não
contribuiu para a autoconfiança. Elohim lutará por você; você só precisa ficar
quieto. Os egípcios foram derrotados não pelos israelitas, mas por Elohim, e
não pela guerra convencional, mas por um milagre. Como então o encontro ensinou
aos israelitas coragem?
Sexto: A parashá
termina com outra batalha, contra os amalequitas. Mas desta vez, não há queixa
por parte do povo, nem medo, nem trauma, nem desespero. Josué lidera o povo na
batalha. Moisés, apoiado por Arão e Hur, fica no topo de uma colina, com os
braços erguidos.
Enfrentando os amalequitas, de
certa forma mais assustadores que os egípcios, os israelitas não disseram que
queriam voltar ao Egito. O silêncio absoluto dos israelitas contrasta mais fortemente
com as queixas anteriores sobre água e comida. Os israelitas acabam sendo bons
guerreiros.
Então, por que a mudança
repentina entre a abertura da nossa parashá e o seu fechamento? Na abertura, Elohim
é protetor e faz milagres. No final, Elohim está mais oculto. Ele não luta a
batalha contra os amalequitas; Ele dá aos israelitas a força para fazê-lo eles
mesmos. Na abertura, os israelitas, enfrentados pelos egípcios, entram em
pânico e dizem que nunca deveriam ter deixado o Egito. No final, enfrentados
pelos amalequitas, eles lutam e vencem.
O que havia mudado?
A resposta, parece-me, é que
talvez tenhamos a primeira instância registrada do que mais tarde se tornou uma
estratégia militar essencial. Em um dos exemplos mais famosos, Júlio César
ordenou que seu exército atravessasse o Rubicão no decorrer de sua tentativa de
tomar o poder. Tal ato era estritamente proibido no direito romano. Ele e o
exército tiveram que vencer, ou seriam executados. Daí a frase "atravessar
o Rubicão".
Em 1519, Cortés (o comandante
espanhol envolvido na conquista do México) incendiou os navios que levavam seus
homens. Seus soldados agora não tinham possibilidade de escapar. Eles tiveram
que vencer ou morrer. Daí a frase "queimar seus barcos".
O que nessas táticas têm em comum
é a ideia de que, às vezes, é preciso entender que não há caminho de volta, nem
recuo, nem possibilidade de fuga induzida pelo medo. É uma estratégia radical,
empreendida quando as apostas são altas e quando são necessárias reservas
excepcionais de coragem. Essa é a lógica dos eventos da parashá desta semana
que são difíceis de entender.
Antes de atravessar o Mar
Vermelho, os israelitas estavam com medo. Porém, uma vez cruzado o mar, não
havia mais caminho de volta.[1] Certamente, eles ainda reclamariam de água e
comida. Mas sua capacidade de lutar e derrotar os amalequitas mostrou o quanto
eles haviam mudado profundamente. Eles atravessaram o Rubicão. Seus barcos
foram queimados. Eles olharam apenas para a frente, pois não havia retorno.
Rashbam faz um comentário
notável, conectando a luta de Jacó com o “anjo”, ao episódio em que
Moisés, retornando ao Egito, é atacado (Êxodo 4:24) e vinculando isso a Jonas
no navio tempestuoso.[2] Todos os três, diz ele, foram dominados pelo medo,
pelo perigo ou pela dificuldade que os confrontava, e cada um queria escapar. O
anjo de Jacó, o encontro de Moisés e a tempestade que ameaçava afundar o navio
de Jonas, foram todas as maneiras pelas quais o Eterno cortou a linha de
retirada.
Qualquer grande empreendimento
vem com medo. Muitas vezes, temos medo do fracasso. Às vezes até mesmo medo do
sucesso. Somos dignos disso? Podemos sustentar isso? Ansiamos pela segurança do
que é familiar, pela vida que conhecemos. Temos medo do desconhecido, do
território desconhecido.
E a jornada em si expõe nossa
vulnerabilidade. Saímos de casa e ainda não chegamos ao nosso destino. Rashbam
estava nos dizendo que, se tivermos esses sentimentos, não devemos ter
vergonha. Até as melhores pessoas sentiram medo. Coragem não é destemor. É, nas
palavras de um título de livro conhecido, sentir o medo, mas fazê-lo de
qualquer maneira.
Às vezes, a única maneira de
fazer isso é saber que não há caminho de volta. Franz Kafka, em um de seus
aforismos, escreveu: "Além de um certo ponto, não há retorno. Este
ponto deve ser alcançado." [3] Da mesma forma, a travessia do Mar
Vermelho foi para os israelitas e era essencial que eles a experimentassem em
um estágio inicial de sua jornada. Marcou o ponto de não retorno; a linha de
não retirada; o ponto crítico em que eles só poderiam avançar.
Acredito que algumas das
maiores mudanças positivas em nossas vidas ocorrem quando, tendo assumido um
desafio, atravessamos nosso próprio Mar Vermelho e sabemos que não há caminho
de volta. Existe apenas um caminho a seguir.
Então YHWH nos dá a força para
travar nossas batalhas e vencer.
Rabino Lord Jonathan
Sacks
Texto adaptado por Francisco Adriano Germano
NOTAS
1. Essa explicação não
funciona para a visão midraica de que os israelitas emergiram do mar na mesma
margem em que haviam entrado. Mas isso é, até onde eu sei, uma visão
minoritária.
2. Rashbam, Comentário a
Gênesis 32: 21-29.
3. Kafka, Cadernos , 16.
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