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FAREMOS E OUVIREMOS

 


Duas palavras que lemos no final de nossa parashá – na’aseh ve’nishma ("Faremos e ouviremos") - estão entre as mais famosas do Judaísmo. Elas representam o que nossos ancestrais disseram quando aceitaram a aliança no Sinai. Elas estão no contraste mais nítido possível com as queixas, pecados, retrocessos e rebeliões que parecem marcar muito do relato da Torá sobre os anos do deserto.

 

Há uma tradição no Talmud [1] de que Elohim teve que suspender a montanha sobre as cabeças dos israelitas para convencê-los a aceitar a Torá. Mas nosso versículo parece sugerir o contrário, que os israelitas aceitaram a aliança voluntária e entusiasticamente:

 

Então [Moshe] pegou o Livro da Aliança e o leu ao povo. Eles responderam: "Faremos e ouviremos [na'aseh ve’nishma] tudo o que o Senhor disse." (Êx 24:7)

 

Mas o que essas palavras realmente significam? Na'aseh é direto. Significa: "Nós faremos". É sobre ação, comportamento. Mas os leitores do meu trabalho saberão que a palavra nishma é tudo, menos clara. Ela poderia significar "Vamos ouvir". mas também poderia significar "Vamos obedecer", ou ainda "Vamos entender". Isso sugere que há mais de uma maneira de interpretar na'aseh ve’nishma. Destacarei algumas a seguir:

 

1) Significa "Faremos e depois ouviremos". Esta é a visão do Talmud [2] e Rashi. O povo expressou sua total fé em Elohim. Eles aceitaram a aliança mesmo antes de ouvirem seus termos. Eles disseram "faremos" antes que eles soubessem o que Elohim queria que eles fizessem. Essa é uma bela interpretação, mas depende da leitura de Êxodo 24 fora de sequência. De acordo com uma leitura direta dos eventos na ordem em que ocorreram, primeiro os israelitas concordaram com o pacto (Êx 19:8), depois Elohim lhes revelou os Dez Mandamentos (Êx 20), depois Moisés esboçou muitos dos detalhes da lei (Ex. 21 a 23), e só então os israelitas disseram na'aseh ve’nishma, quando já haviam ouvido muito da Torá.

 

2) "Faremos [o que já fomos ordenados até agora] e obedeceremos [a todos os futuros comandos]". Esta é a visão de Rashbam [3]. A declaração dos israelitas, portanto, olhou para trás e para frente. As pessoas entenderam que estavam em uma jornada espiritual e física e talvez não soubessem todos os detalhes da lei de uma só vez. O Shemá aqui não significa apenas "ouvir", mas "ouvir, obedecer, responder fielmente em ações".

 

3) "Faremos obedientemente" (Sforno). Nesta visão, as palavras na'aseh e nishma representam uma única ideia expressa por duas palavras. Os israelitas estavam dizendo que fariam o que Elohim lhes pedia, não porque buscavam algum benefício, mas simplesmente porque procuravam fazer Sua vontade. Ele os salvou da escravidão, os guiou e alimentou no deserto, e eles procuraram expressar sua completa lealdade a Ele como seu redentor e legislador.

 

4) "Faremos e entenderemos" (Isaac Arama em Akeidat Yitzhak). A palavra shemá pode ter o sentido de "entender", como na declaração de Elohim sobre a Torre de Babel: "Vamos, então, descer e confundir seu discurso lá, para que eles não entendam [yishme'u] o discurso uns dos outros "(Gên. 11:7). De acordo com essa explicação, quando os israelitas colocaram “fazer” antes de “entender”, estavam expressando uma profunda verdade filosófica. Há certas coisas que só entendemos por fazer. Só entendemos liderança liderando, entendemos autoria por escrito. Entendemos música ouvindo. Não basta ler livros sobre essas coisas. Assim é com fé. Entendemos verdadeiramente o Judaísmo vivendo de acordo com seus mandamentos. não pode compreender uma fé do lado de fora. Fazer leva à compreensão.

 

Ficando com essa interpretação, podemos ouvir uma implicação adicional e importante. Se você observar atentamente os capítulos 19 e 24 de Êxodo, verá que os israelitas aceitaram a aliança três vezes. Mas os três versículos em que essas aceitações ocorreram são significativamente diferentes:

 

Então todo o povo respondeu a uma voz: "Faremos [na'aseh] tudo o que o Senhor disse". (Êx 19:8)

 

Quando Moisés foi e disse ao povo todas as palavras e leis do Senhor, eles responderam com uma voz: "todas as palavras que o Senhor tem falado, faremos [na'aseh]". (Êx 24:3)

 

Então [Moisés] pegou o Livro da Aliança e o leu ao povo. Eles responderam: "Faremos e ouviremos [na'aseh ve’nishma] tudo o que o Senhor disse." (Êx 24:7)

 

 

Apenas o terceiro deles contém a frase na'aseh ve’nishma. E apenas o terceiro carece de uma declaração sobre a unanimidade do povo. Os outros dois são enfáticos ao dizer que as pessoas eram como uma: as pessoas "responderam juntas" e "responderam com uma só voz". Essas diferenças estão conectadas?

 

O que une judeus, ou deveria é a ação, não a reflexão. Fazemos as mesmas ações, mas as entendemos de maneiras diferentes. Há um acordo sobre os na'aseh, mas não nishma. Foi o que Maimônides quis dizer quando escreveu em seu Comentário à Mishnah:

 

"Quando há uma discordância entre os Sábios e ela não diz respeito a uma ação, mas apenas ao estabelecimento de uma opinião (sevarah), não é apropriado fazer uma decisão haláchica em favor de um dos lados."[4]

 

O judaísmo é uma questão de credo e de ação. Mas devemos permitir às pessoas uma grande margem de manobra na maneira como elas entendem a fé de nossos ancestrais. Caçar heresias não é a nossa atividade mais feliz. Uma das grandes ironias da história judaica é que ninguém fez mais do que o próprio Maimônides para elevar o credo ao nível do dogma halachicamente normativo, para depois se tornar na primeira vítima dessa doutrina. Durante sua vida, ele foi acusado de heresia e, após sua morte, seus livros foram queimados. Foram episódios vergonhosos.

 

Por fim "faremos e entenderemos" significa: faremos da mesma maneira e entenderemos do nosso jeito. Acredito que a ação nos une, deixando espaço para encontrar nosso próprio caminho para a fé.

 

Rabino Lord Jonathan Sacks

Texto adaptado por Francisco Adriano Germano

 

NOTAS

 

1. Shabat 88a, Avodah Zarah 2b.

2. Shabat 88a.

3. Mechilta 20: 15b.

4. Maimônides, Comentário à Mishná, Sinédrio, 10: 3.

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