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O CAMINHO DE ATOS 15

 


Introdução

 

A questão de Atos 15 é bastante controversa e comumente utilizada para defender a não-observância da Torá (a Lei do Eterno), por supostamente, ter ordenado aos gentios que cumprissem unicamente a um conjunto de determinações menores.

 

Dois grupos se utilizam fundamentalmente dessa leitura:

 

- Grupos cristãos, que entendem que a Torá teria sido revogada (apesar da Bíblia a chamar de eterna), e que esta seria apenas mais uma instância que comprova tal pensamento.

- Grupos de pessoas que creem que a Torá é única e exclusivamente para judeus, e que os gentios são cidadãos de uma classe distinta, e que, portanto, devem se ater unicamente a essas recomendações.

 

Neste estudo, analisaremos Atos 15 em profundidade, para compreendermos sua real mensagem, e verificarmos onde a Torá se posiciona dentro das recomendações dos emissários de Yeshua.

 

A Principal Questão

 

Não por acaso, Atos 15 se inicia da seguinte forma:

 

Então alguns que tinham descido da região de Yehudá ensinavam assim os irmãos: Se não vos circuncidardes conforme o costume da lei, não podeis salvar-vos. (Ma’assei haSh’lichim/Atos 15:1)

 

Alguns automaticamente associam tal passagem à Torá de Elohim, afirmando por essa razão que esse grupo insistia que a salvação ainda viria por meio do cumprimento de uma mitsvá (mandamento). Porém, a Torá jamais afirma que a circuncisão salva, em momento algum das Escrituras!

 

E justamente porque a Torá jamais afirma tal conceito é que Sha’ul (Paulo) pode, posteriormente, esclarecer teologicamente que a salvação nunca veio por intermédio da circuncisão, e utiliza para isso o exemplo de Avraham avinu (Abrãao, nosso pai), que foi chamado por Elohim antes de se circuncidar:

 

[...] como dissemos: A fé de Avraham foi considerada como retidão. Quando, então, foi considerada? [Quando] ele já era circuncidado, ou [quando] ainda não era circuncidado? Não [quando] já era circuncidado, mas sim [quando] ainda não era circuncidado. (Ruhomayah/Romanos 4:9-10)

 

Se a Torá afirmasse que a circuncisão salva, seria impossível a Sha’ul (Paulo) fazer tal construção teológica sem negar as Escrituras.

 

Não é à toa que a palavra “costume” é empregada na narrativa de Atos 15. É importante relembrarmos que os p’rushim (fariseus) possuíam uma série de costumes que afirmavam terem sido originados em Moshe (Moisés), os quais não faziam parte das Escrituras. Essa prática, inclusive, permanece até hoje dentro do Judaísmo Ortodoxo, herdeiro do movimento farisaico. Sobre esses costumes, o historiador Flavio Josefo, que praticamente foi contemporâneo a Yeshua e dos seus emissários, afirma o seguinte:

 

"O que eu agora explico é isto, que os fariseus têm conduzido as pessoas a um grande número de observâncias pela sucessão de seus pais, que não estão escritas na Lei de Moisés; e por esta razão os saduceus os rejeitam e dizem que nós devemos considerar apenas as observâncias que são obrigatórias, as quais estão na Palavra escrita, mas não devemos observar as que se derivam da tradição de nossos pais." (Antiguidades 13:10:6)

 

Dentre essas tradições, algumas facções dos fariseus consideravam que a circuncisão seria obrigatória para a salvação. Mas, de onde se deriva essa ideia?

 

É importante que o leitor compreenda que não era raro que os grupos judaicos nos tempos de Yeshua compreendessem e aceitassem teologicamente que a salvação era restrita ao povo de Israel, no sentido de que não haveria qualquer plano de Elohim para o resgate de pessoas de outras nações. Mais até do que isso, a pertinência física ao povo de Israel seria suficiente para assegurar a salvação, conforme afirma a Mishná:

 

“Todo Israel tem uma porção no mundo vindouro, pois está escrito, teu povo é todo reto; eles herdarão a terra para sempre.” (m. Sanhedrin 10:1)

 

É justamente por essa razão que parte do contexto teológico de Sha’ul (Paulo) é o de afirmar que a circuncisão, se não acompanhada pela observância da Torá, torna-se em incircuncisão:

 

Pois a circuncisão é proveitosa se a Torá for cumprida. Se tu abandonas a Torá, tua circuncisão se torna incircuncisão. (Ruhomayah/Romanos 2:25)

 

Ou seja: De nada adianta ter sido circuncisado se a pessoa rejeitar a fé e a obediência à Torá.

 

Não é difícil observar, portanto, que é impossível afirmar que a circuncisão salva ou mesmo que seja um dos requisitos de salvação. Todavia, naquele tempo havia aqueles que pensavam dessa forma, conforme veremos adiante.

 

Os Adversários de Paulo

 

Percebemos em Atos 15 que o principal adversário teológico de Sha’ul (Paulo) era um grupo que o próprio Sha’ul (Paulo) chama em suas cartas de “os da circuncisão”.

 

Alguns erroneamente entendem que esse grupo era composto por aqueles que ainda praticavam a circuncisão. Todavia, Atos 15:1 nos mostrou que esse era um grupo específico de judeus, que defendiam que a circuncisão seria rito de salvação.

 

Essa visão não representava a totalidade do pensamento judaico na época de Sha’ul (Paulo), mas tinha bastante força teológica entre alguns grupos, e exatamente por isso eles eram denominados “os da circuncisão”.

 

Abaixo, vejamos o que diz a Enciclopédia Judaica:

 

“A questão entre os partidos zelote e liberal acerca da circuncisão de prosélitos permaneceu aberta nos tempos tanaíticos. R. Josué, afirmando que a imersão, ou rito batismal, tornava a pessoa um prosélito pleno mesmo sem circuncisão, porque Israel, quando recebeu a Torá, não requereu nenhuma iniciação além da imersão purificadora; enquanto R. Eliezer faz da circuncisão uma condição para a admissão de um prosélito e declara o rito batismal como consequência. (Yeb. 46a)” (Jewish Encyclopedia, “Circumcision”)

 

Sha’ul (Paulo) também nos relata em Galutyah/Gálatas 2 que Kefa (Pedro) temia “os da circuncisão”. Isso deve ser compreendido pelo fato de que, além da circuncisão ser vista como requisito de salvação por parte desse grupo, havia ainda uma enorme xenofobia para com aqueles que ainda não eram circuncisados. Tanto que temos, em meio aos escritos judaicos históricos afirmações como a que se segue:

 

“... O Todo-Misericordioso mencionou o ‘incircunciso’... porque ele é repulsivo.” (b. Yebamot 71a)

 

É justamente contra esses que Sha’ul (Paulo) é taxativo ao demonstrar que se pela fé um prosélito está em fase de aprendizado passa a obedecer a Torá, a sua “incircuncisão” (que era termo usado jocosamente por esse grupo para falar de seu status supostamente imundo) tornava-se em “circuncisão” (isto é, um estado de pertinência ao povo segundo esse grupo).

 

Mas se aquele que ainda é incircunciso guardar as mitsvot da Torá, acaso não lhe será a sua incircuncisão imputada por circuncisão? (Ruhomayah/Romanos 2:26)

 

Infelizmente, muitos não buscam conhecer o contexto das palavras de Sha’ul (Paulo) e a compreensão teológica de seus adversários, e por esta razão acabam concluindo erroneamente que Sha’ul (Paulo) era contrário à circuncisão, quando na realidade a contrariedade de Sha’ul (Paulo) era claramente contra a teologia do “grupo da circuncisão”: uma teologia preconceituosa, xenofóbica, e que distorcia o propósito bíblico da circuncisão.

 

A Circuncisão vem primeiro?

 

O texto de Atos 15 traz também a seguinte informação preciosa:

 

Mas alguns da seita dos p’rushim, que tinham crido, levantaram-se dizendo: É necessário circuncidá-los, e então mandar-lhes observar a Torá de Moshe. (Ma’assei haSh’lichim/ Atos 15:5)

 

Ao leitor que não conhecer o contexto, a frase acima pode passar desapercebida, mas há algo de fundamental nela: a ordem em que aparece. Essa ordem é ilustrativa do relacionamento do Judaísmo para com o prosélito.

 

“Os que guardam o Shabat e não são circuncisados são intrusos, e merecem punição...” (Devarim Rabá I e Ma’assei Torá)

 

Como podemos perceber, chegava-se ao ponto de acusar de falsidade àqueles que buscavam uma vida de obediência ao ETERNO, e que, na condição de prosélitos que estavam aprendendo a Palavra de Elohim, ainda não haviam se circuncidado.

 

Até os dias de hoje, no Judaísmo Ortodoxo, um prosélito que esteja, por exemplo, aprendendo a observar o Shabat, é encorajado a propositadamente transgredir o Shabat (dentro do que a visão ortodoxa considera como transgressão) porque ele só adquire o direito à obediência das Escrituras uma vez que atinja sua conversão.

 

Repare, portanto, o que dizia o grupo da circuncisão: Era necessário que aquelas pessoas passassem pela circuncisão para depois observarem a Torá! Ou seja, enquanto não fossem circuncisados, seriam propositadamente impedidos de observarem a Torá plenamente - quer por não serem instruídos na mesma, quer até mesmo de forma proposital, como afirma o Talmud e perdura até hoje na comunidade judaica! Ninguém pode se colocar na posição de legislador! Certamente, não há base para tal absurdo na Bíblia.

 

E se hoje essa interpretação já parece absurda para nós, que vivemos em uma sociedade em que qualquer banca de jornal, supermercado ou site da internet oferece fácil acesso ao texto bíblico, quem dirá em uma sociedade onde as Escrituras eram caríssimas (pois requeriam anos de trabalhos de copistas), e de difícil acesso! Como exigir circuncisão de alguém que sequer sabia o que era a Torá, o que a circuncisão representava, mas que já havia recebido a salvação em Yeshua para seus pecados?

 

Além do erro teológico de se alegar que a circuncisão salva, havia mais dois erros graves: O de impedir a obediência à Torá (por exclusão das pessoas, ou mesmo proibindo explicitamente a observância) e o de exigir algo para o qual as pessoas não tinham o menor preparo.

 

O Equivalente Moderno

 

Nunca se deve perder de vista esse que é o principal ponto de discussão em Atos 15, que é a questão da salvação por meio de uma circuncisão que seguiria os ritos e teologia extrabíblicos de uma (ou possivelmente algumas) das facções dos p’rushim (fariseus).

 

Para compreender melhor a questão, podemos recorrer a um exemplo moderno muito semelhante ao que ocorria na época, e que certamente ajudará a todos a compreenderem melhor essa questão: a imersão, ou como é conhecida no meio cristão, o “batismo”. Para fins de facilitar a compreensão, utilizaremos o termo grego “batismo”, que significa “imersão”.

 

A Igreja Católica é uma instituição que afirma, categoricamente e com todas as letras, que o batismo é requisito incondicional de salvação. Em outras palavras, o batismo salva. E é justamente essa uma das bases de sua justificativa para a teologia do “batismo infantil”, pois se a criança morre sem ser batizada, está condenada a uma espécie de limbo por não ter recebido a salvação.

 

Sobre isso, a Enciclopédia Católica afirma:

 

“... todos que partem sem batismo... são excluídos da visão de Deus.” (Catholic Encyclopedia, “Baptism”)

 

Lutero também defendia a mesma tese, provavelmente ainda como resquício de um dogma católico, e chegou a afirmar:

 

“Ademais, é o mais solene e estritamente ordenado que devemos ser batizados, ou não podemos ser salvos...” (O Grande Catecismo, XIII)

 

Outros grupos mais modernos também defendem ainda que o batismo é requisito de salvação. Não é raro, inclusive, encontrar grupos onde o batismo é sequer explicado e a pessoa mal conhece as Escrituras, mas se batiza para assegurar seu “lugar no céu”.

 

Este não é o tema principal deste artigo, e, portanto, não será abordado em profundidade. Todavia, ressalta-se aqui que a imersão, ou batismo, é uma mitsvá (mandamento) para todo seguidor de Yeshua, porém não configura condição de salvação, pois somos salvos unicamente pela graça de Elohim.

 

Porém, assim como há grupos modernos que ainda defendem que o batismo salva, distorcendo assim o propósito da prática da imersão, havia naquela época aqueles que distorciam o conceito da circuncisão, afirmando que a circuncisão salva.

 

Mas, assim como o mau uso do batismo não invalida sua prática adequada, o mesmo pode ser dito sobre a prática da circuncisão.

 

A Torá é Jugo Pesado?

 

A frase de Ya’akov HaTsadik (Tiago, o Justo) é fundamental para a compreensão do contexto de Atos 15. Ya’akov (Tiago) afirma que:

 

Agora, pois, por que tentais a Elohim, pondo sobre a cerviz dos talmidim um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportar? (Atos 15:10)

 

Alguns concluem que o jugo a que Ya’akov (Tiago) se refere é a observância da Torá. Em outras palavras: A observância da Torá seria um jugo, um fardo pesado. Porém, a Bíblia demonstra que essa interpretação não é possível, pois o próprio Elohim afirma que a Torá não é pesada, mas sim deleitosa:

 

Porque esta mitsvá [mandamento] que, hoje, te ordeno não é demasiado difícil, nem está longe de ti. (Devarim/Deuteronômio 30:11)

 

Terei prazer nas tuas mitsvot [mandamentos], as quais eu amo. (Tehilim/Salmos 119:47)

 

Além disso, Ya’akov afirma que esse era um jugo que “nem nossos pais nem nós pudemos suportar”. Todavia, tanto eles quanto os patriarcas observavam a Torá. O próprio livro de Atos nos diz o seguinte:

 

Ouvindo eles isto, glorificaram a Elohim, e disseram-lhe: Bem vês, irmãos, quantos milhares há entre os moradores da região de Yehudá que têm crido, e todos são zelosos da Torá. (Ma’assei haSh’lichim/Atos 21:20)

 

Mas, então, o que era esse jugo pesado? Veremos a seguir.

 

A Profecia sobre o Jugo Pesado

 

Desde os profetas, já havia a profecia de que Israel se tornaria refém de um sistema religioso composto por doutrinas de homens, que se distanciaria da Torá de Elohim. Pois as Escrituras afirmam:

 

A quem, pois, se ensinaria o conhecimento? E a quem se daria a entender doutrina? Ao desmamado do leite, e ao arrancado dos seios? Porque é mandamento sobre mandamento, mandamento sobre mandamento, regra sobre regra, regra sobre regra, um pouco aqui, um pouco ali. Assim por lábios gaguejantes, e por outra língua, falará a este povo. Ao qual disse: Este é o descanso, dai descanso ao cansado; e este é o refrigério; porém não quiseram ouvir. Assim, pois, a palavra de YHWH lhes será mandamento sobre mandamento, mandamento sobre mandamento, regra sobre regra, regra sobre regra, um pouco aqui, um pouco ali; para que vão, e caiam para trás, e se quebrantem e se enlacem, e sejam presos. Ouvi, pois, a palavra de YHWH, homens escarnecedores, que dominais este povo que está em Yerushalayim. Porquanto dizeis: Fizemos aliança com a morte, e com o inferno fizemos acordo; quando passar o dilúvio do açoite, não chegará a nós, porque pusemos a mentira por nosso refúgio, e debaixo da falsidade nos escondemos. Portanto assim diz Adonai YHWH: Eis que eu assentei em Tsiyon uma pedra, uma pedra já provada, pedra preciosa de esquina, que está bem firme e fundada; aquele que crer não se apresse. (Yeshayahu/Isaías 28:9-10)

 

Vejamos um resumo do que profetiza Yeshayahu (Isaías):

 

- Os líderes do povo perverteriam a Palavra de Elohim em um sistema cheio de “regras sobre regras”.

- Esse sistema seria baseado em uma mentira, e os líderes concluiriam que através dele, estariam livres da ira de Elohim.

- Devido a esse sistema, o povo perderia o conhecimento de Elohim.

- Elohim traria refrigério para o povo, no momento adequado.

- Esse refrigério viria por meio do Mashiach (Messias), que é a pedra de esquina profetizada.

- O povo ouviria sobre a libertação através de pessoas aparentemente despreparadas (lábios gaguejantes) e até mesmo de estrangeiros.

 

Podemos perceber, com clareza, que Yeshua HaMashiach cumpriu, juntamente com os emissários a Seu serviço, a profecia supracitada. E Yeshua nos confirma a questão do jugo das tradições humanas que compunham o sistema legal judaico, ao afirmar:

 

... os escribas e os p’rushim... Atam fardos pesados e difíceis de carregar e os põem sobre os ombros dos homens... (Matitiyahu/Mateus 23:2,4)

 

Vós deixais a mitsvá de Elohim, e vos apegais à tradição dos homens. Disse-lhes ainda: Bem sabeis rejeitar a mitsvá de Elohim, para guardardes a vossa tradição. (Marcos 7:8-9)

 

O Jugo de Yeshua x O Jugo Fariseu

 

É importante compreendermos que o termo “jugo” é um eufemismo judaico para “submissão ao sistema religioso”. Isso pode ser visto, por exemplo, na Mishná, que ao discutir a ordem das estrofes de uma determinada reza diz:

 

“Por que [a seção d]o ‘Shemá’ precede [a seção d]o ‘vehayá im shamoa’? Para que o homem reverencie o Reino dos Céus, antes de tomar sobre si o jugo dos mandamentos.” (m. Berachot 2:2)

 

O Talmud também emprega o mesmo tipo de terminologia, e afirma:

 

“Para todas as transgressões da Torá, quer ele tenha se arrependido ou não, o Yom Kipur traz expiação, exceto para o caso de alguém que rejeita o jugo, perverte os ensinamentos da Torá, e rejeita a aliança na carne.” (b. Shevuot 13a)

 

Ou seja, dentro do Judaísmo, o termo “jugo” era usado como eufemismo para a sujeição e obediência à Lei. Existe, contudo, um porém. Para os p’rushim (fariseus), a Lei Judaica incluía muito mais do que unicamente a “Torá Escrita” (isto é, os escritos bíblicos), mas também incluía uma suposta “Torá Oral” composta de uma série de regras e regulamentos recebidos por meio da tradição. O próprio nome “Mishná” significa “a segunda”, isto é, “a segunda Torá”. Já vimos em nossos estudos que as Escrituras não dão suporte a esse tipo de acréscimo.

 

O Pirkei Avot, a “Ética dos Pais”, deixa claro o posicionamento dos p’rushim (fariseus), ao afirmar:

 

“Aquele que... faz interpretações da Torá que não são segundo a halachá, mesmo que possua a Torá e boas obras, não tem porção no mundo vindouro.” (Pirkei Avot 3:11)

 

Ou seja, o “jugo fariseu” era não apenas a observância da Torá, mas sim toda uma submissão à sua “halachá”. O termo “halachá” significa “forma de caminhar”, e dentro do linguajar judaico, refere-se à forma de interpretar e viver a Torá.

 

Repare que Pirkei Avot chega a dizer que mesmo aqueles que aceitam a Torá, mas que desprezam o sistema legal farisaico não tem parte no mundo vindouro, isto é, não possuem salvação!

 

É por esta razão, e cumprindo exatamente a profecia que vimos anteriormente de reversão do jugo dos líderes do povo, que Yeshua afirma:

 

Vinde a mim, todos os que estai cansados e oprimidos, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve. (Matitiyahu/Mateus 11:29-30)

 

Repare ainda que a passagem que diz “achareis descanso para as vossas almas” se refere às veredas antigas descritas por Yirmiyahu (Jeremias) 6:16, que diz:

 

“Assim diz YHWH: Ponde-vos nos caminhos, e vede, e perguntai pelas veredas antigas, qual é o bom caminho, e andai por ele; e achareis descanso para as vossas almas...”

 

Ou seja, o que é o jugo de Yeshua? É a Torá original, pura, sem acréscimos humanos. E por esta razão, por reverter o sistema religioso escravizante gerado pelos líderes do povo, é que ela é capaz de reconduzir às veredas antigas e produzir descanso para a alma.

 

Se considerarmos o eufemismo judaico da observância da Torá como “jugo”, parafraseando Yeshua, sua mensagem era:

 

“Tomai sobre vós a observância da Torá conforme eu ensino... Porque a observância da Torá que eu ensino é suave e leve...”

 

O que isso nos lembra? Exatamente o propósito original de que o mandamento era leve, e deleitoso, conforme dizem as Escrituras!

 

Agora, voltemos para Ya’akov HaTsadik (Tiago, o Justo). Que fardo era esse que Ya’akov diz que não poderia suportar? Se novamente interpretarmos sua frase à luz do contexto, podemos parafraseá-lo da seguinte forma:

 

“Agora, pois, por que tentais a Elohim, exigindo que os discípulos sigam um sistema pesadíssimo de leis e acréscimos de tradições humanas que nem nossos pais nem nós pudemos suportar?”

 

Esse sistema exigia, entre outras coisas, que o prosélito seguisse com absoluta perfeição a todos os costumes, para que pudesse pertencer ao povo. E se prevalecia, conforme vimos anteriormente, a doutrina de que era necessária a “pertinência social” (chamemos assim) ao povo de Israel para ser salvo, então somente quem pudesse tomar sobre si o peso de tamanho jugo seria capaz de obter salvação!

 

E é justamente contra toda essa distorção teológica que os emissários se insurgiram. Porque as Escrituras são puras e simples.

 

Para se tornar um prosélito, segundo as Escrituras, basta fazermos o que fez Ruth, ao dizer a sua sogra Naomi:

 

...onde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Elohim é o meu Elohim. (Ruth 1:16)

 

A conversão de um prosélito é simples, porém profunda. Ela não depende de ritos, nem de tradições, e muito menos exige condições, além do profundo desejo de seguir os passos de Yeshua, vivendo como Ele viveu, aceitando-O como Adon ve’Go’el (Senhor e Redentor) - e isto só pode ocorrer se houver uma profunda transformação de coração realizada pela Ruach HaKodesh (Espírito de Santidade.)

 

Infantes no Leite

 

Após a discussão entre os emissários, o Beit Din dos emissários determinou que algumas recomendações fossem seguidas pelos prosélitos, conforme podemos verificar abaixo:

 

Por isso, julgo que não se deve perturbar aqueles, dentre as nações, que se convertem a Elohim, mas escrever-lhes que se abstenham da impureza daquilo que é sacrificado [aos ídolos], da imoralidade sexual, do que é estrangulado, e do sangue. (Ma’assei haSh’lichim/Atos 15:19-20)

 

Essas condições impostas pelos emissários podem ser compreendidas como alguém pedir a uma pessoa de origem católica que não vá para um serviço religioso trajando terço, e que remova as imagens de seu lar.

 

Tratava-se de um mínimo de pré-condições para que os judeus pudessem aceitar o convívio com os prosélitos recém-chegados à fé. Deve-se ressaltar que sem tais condições, seria impossível a convivência com os judeus - especialmente os de origem farisaica.

 

Se formos pensar, todavia, nas proibições, vemos que são de uma natureza comum: Referem-se a práticas sociorreligiosas inadmissíveis. Em meio ao paganismo, não era incomum a prática de orgias e banquetes religiosos, com a utilização inclusive de sangue e/ou sacrifícios de animais. É importante relembrar que naquela época, prevalecia a cultura helenista no mundo, e que tais práticas eram praticadas em todo império romano.

 

Devemos compreender que para essas pessoas recém-chegadas, nada era tão trivial quanto o é para nós. Nem mesmo o conceito monoteísta! Enquanto hoje o monoteísmo é um conceito quase universal, naquela época o politeísmo ainda prevalecia no mundo, e o aceitar Yeshua não necessariamente significaria uma renúncia imediata a outros deuses e ídolos. Especialmente considerando que as pessoas não tinham, como falamos anteriormente, nenhum acesso às Escrituras. E, se não cumprissem essas recomendações mínimas, continuariam sem acesso às Escrituras, pois jamais seriam aceitas nas comunidades judaicas, que naquela época ainda compunham o cerne da fé.

 

Esse conjunto de regras dadas pelos emissários algumas vezes são citados por alguns como sendo as únicas observâncias direcionadas aos “gentios”. Em outras palavras: Não seria mais necessário cumprir nenhuma outra determinação das Escrituras.

 

Todavia, não é difícil demonstrar que essas regras eram apenas o início da instrução dos prosélitos, compostas para permitir a aproximação com a comunidade judaica, e não um guia definitivo sobre o que deveria ser seguido por todos.

 

É facilmente verificável que nenhum dos Asseret HaDibr’ot (os chamados “10 Mandamentos”) é mencionado nesse ponto. Todavia, ninguém duvida da validade deles. Assim como de outras mitsvot (mandamentos) importantes da Torá, como o amar ao próximo como a si mesmo.

 

É também fundamental atentarmos para o versículo que se segue às recomendações dos emissários:

 

Porque Moshe, desde as primeiras gerações, tem em cada cidade homens que o proclamam, e que o leem a cada Shabat nas sinagogas. (Ma’assei haSh’lichim/Atos 15:21)

 

Esta frase não é dita por acaso: Para que os prosélitos pudessem aprender tudo sobre a fé, desde o momento da queda do homem, passando pelas promessas dadas a Avraham (Abraão) e aos patriarcas, bem como o livramento de Israel, a semente de David etc., esses prosélitos deveriam ir às sinagogas no Shabat.

 

Nas sinagogas, eles teriam acesso às Escrituras e a Moshe (Moisés), conforme afirma Ya’akov (Tiago). Eles aprenderiam de Moshe (Moisés) sobre a queda do homem e a promessa do seu sucessor. E o que mais aprenderiam? A cumprir as mitsvot (mandamentos) de Elohim, gradativamente!

 

Ou seja, ao contrário da teologia dos “da circuncisão”, que afirmava que eles primeiro deveriam aprender a Torá (além dos costumes farisaicos) e se circuncidarem para que fossem salvos, Ya’akov (Tiago) propõe um posicionamento completamente oposto: Eles iriam aprender sobre a Torá PORQUE foram salvos, e não para se salvarem!

 

Isso muda completamente o espírito com que se encara a Torá. Ao invés de olharem para a Torá como um conjunto de obrigações que deveriam ser cumpridas à risca para que pudessem pertencer ao povo de Israel, e assim serem salvos, conforme determinava a Mishná, os prosélitos eram salvos pela graça de Elohim através do sacrifício de Yeshua, e então por amor a Elohim aprenderiam qual é a Sua vontade, expressa na Torá!

 

Podemos perceber que nunca foi a intenção dos emissários que os prosélitos não-judeus estacionassem em sua vida espiritual, mantendo-se unicamente nos ensinos que receberam nessa carta de resposta. Ao contrário, a cada Shabat aprenderiam as Escrituras nas sinagogas, para que sua fé fosse fortalecida.

 

É por esta razão que Ivrim (Hebreus) nos fala de diferentes níveis de maturidade espiritual, desde o leite até o alimento sólido:

 

Eis que no tempo de hoje está sobre vós para serdes mestres conforme o vosso entendimento e pela fé na visão, [contudo] ainda necessitais ensinamento repetido, para iniciarem em vós os princípios das palavras de Elohim. Para vós eis uma analogia: vós necessitais tomar leite, e não alimento sólido. Pois quem precisa de mais leite não está fortificado na Palavra de pureza, pois não tem recebido a fundação, pois é uma criança. Mas o alimento dos maduros é o pão do alimento sólido, os quais têm discernimento, tendo acostumado os seus sentidos e aprendido a discernir entre a justiça e o mal. (Ivrim/ Hebreus 5:12-14)

 

Podemos ver que Ivrim (Hebreus) fala do alimento sólido, que trará maturidade, como o receber a instrução que trará a capacidade de “discernir entre a justiça e o mal”.

 

E, segundo as Escrituras, de onde vem essa capacidade? Justamente do conhecimento da Torá:

 

Vês aqui, hoje te tenho proposto a vida e o bem, e a morte e o mal; Porquanto te ordeno hoje que ames a YHWH teu Elohim, que andes nos seus caminhos, e que guardes os seus mandamentos, e os seus estatutos, e os seus juízos, para que vivas... (Devarim/ Deuteronômio 30:15-16)

 

Leis Noéticas?

 

Não são poucos os que argumentam que o conteúdo das recomendações de Atos 15 sejam, na realidade, originárias da crença do Judaísmo tradicional nas chamadas “Leis Noéticas”. Essas leis teriam, supostamente, sido dadas a Noach (Noé) para toda a humanidade, enquanto caberia unicamente a Israel a observância das demais mitsvot (mandamentos) de Elohim.

 

O Talmud Bavli, no tratado Sanhedrin, enumera as seguintes leis como tendo supostamente sido dadas a todos os filhos de Noach (Noé):

 

1) Proibição à idolatria;

2) Proibição à blasfêmia;

3) Proibição ao assassinato;

4) Proibição à imoralidade sexual;

5) Proibição ao roubo;

6) Proibição ao comer carne de um animal vivo;

7) Requerimento de que se estabeleçam sistemas jurídicos;

 

Podemos perceber que apenas uma das recomendações dos emissários, a da moralidade sexual, é semelhante à das chamadas “leis noéticas”. Além dessa, somente uma outra possui tema relativamente parecido, a da questão da idolatria. E, mesmo assim, as recomendações dos emissários são bem mais específicas.

 

Mesmo supondo essa coincidência de duas das recomendações, por que não há qualquer menção às outras cinco “leis noéticas”? Mesmo se supormos que este ou aquele preceito estaria implícito mais adiante, estatisticamente temos uma semelhança muito pequena entre os dois códices de recomendações. Temos menos de 15% de coincidência exata, e menos de 30% de coincidência temática.

 

A única semelhança real entre as chamadas “leis noéticas” e as recomendações de Atos 15 são um motivador comum: A necessidade de conviver com não-judeus, no caso dos p’rushim (fariseus) por causa da perseguição romana, e no caso dos seguidores de Yeshua por causa do rápido espalhar da fé.

 

Essa necessidade da convivência com não-judeus gerou a necessidade de se estabelecer condições mínimas para que o convívio fosse possível.

 

Além da estatística, outro fator exclui totalmente a possibilidade de que os emissários estariam fazendo uma suposta alusão às leis noéticas: O fato de que essas leis são, no mínimo, do quinto século da era comum.

 

A maior prova disso é o fato de que a Mishná, que é do segundo século da era comum, não faz qualquer menção a tais, leis, nem infere sua existência. Pelo contrário, como vimos, a Mishná não fala da existência de salvação para as nações, muito pelo contrário.

 

Teologicamente, a Mishná parte do pressuposto de que o mundo vindouro pertence exclusivamente a Israel e aos prosélitos que aceitarem pertencer ao povo.

 

As leis noéticas já refletem um tempo em que o Judaísmo deixou de ser proselitista por conta da perseguição romana, e passou a entender a Torá como uma revelação para ser mantida internamente, ao passo que ao mundo caberiam apenas as leis noéticas. O Talmud chega ao ponto de dizer que um gentio que estuda a Torá merece morrer:

 

“R. Johanan disse: Um pagão que estuda a Torá merece a morte, pois está escrito, Moisés ordenou a nós uma Torá por herança; é nossa herança e não deles... um gentio que estuda a Torá é como um sumo sacerdote, mas isso se refere às suas próprias sete leis.” (b. Sanhedrin 59a)

 

Além disso, a ideia das sete leis de Noach (Noé) não somente inexistem na Torá, como ainda contrariam a mesma, que afirma categoricamente:

 

Uma mesma Torá e um mesmo direito haverá para vós e para o estrangeiro que peregrina convosco. (Bamidbar/Números 15:16)

 

É igualmente importante relembrar que nos profetas existem várias menções às nações cumprindo a Torá no Reinado de Yeshua. Vejamos dois exemplos:

 

E não fale o filho do estrangeiro, que se houver unido a YHWH, dizendo: Certamente YHWH me separará do seu povo... E aos filhos dos estrangeiros, que se unirem a YHWH, para o servirem, e para amarem o Nome de YHWH, e para serem seus servos, todos os que guardarem o Shabat, não o profanando, e os que abraçarem a minha aliança... (Yeshayahu/Isaías 56:6)

 

E acontecerá que, todos os que restarem de todas as nações que vieram contra Yerushalayim, subirão de ano em ano para adorar o Rei, YHWH dos Exércitos, e para celebrarem a festa de Sukot. (Zechariyah/Zacarias 14:16)

 

Justamente por esta razão, todas as vertentes do Judaísmo tradicional, e outras como os caraítas, são unânimes em afirmar que Mashiach (o Messias) traria a observância da Torá a todas as nações, e não somente a Israel.

 

Conclusão

 

Aqui apresentamos um pequeno resumo de nossas dez principais conclusões, com base nesse estudo mais aprofundado de Atos 15 e de seu contexto:

 

- O principal problema teológico relatado em Atos 15 era a exigência da circuncisão para salvação.

- Os “da circuncisão” exigiam, inclusive, que a circuncisão precedesse a observância da Torá, ou mesmo seu estudo.

- Essa exigência é extrabíblica, e não invalida a prática adequada da circuncisão dentro de seu contexto bíblico.

 - O jugo pesado mencionado por Ya’akov HaTsadik (Tiago, o Justo) era o peso de um sistema legal baseado em tradições humanas, e não a Torá.

- As recomendações dadas pelo Beit Din dos emissários eram um ponto de partida para os prosélitos, e não um fim nelas mesmas.

- As recomendações nada tinham a ver com as chamadas e supostas “7 Leis Noéticas”.

- As “7 Leis Noéticas” não são bíblicas, não surgiram com Noach (Noé), e não existiam nos tempos de Yeshua.

- O Beit Din dos emissários instrui aos prosélitos que aprendam a Torá nas sinagogas.

- A Torá é única para naturais e enxertados.

- No Reinado do Mashiach (Messias), a Torá aparece sendo cumprida em toda a terra, e não apenas por um suposto “Israel físico.”

 

 

Por Sha’ul Bentsion

 

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