A primazia da vida humana é um
princípio fundamental da lei judaica e um valor central da tradição judaica.
Um dos princípios mais básicos da
lei judaica é que a vida humana vem em primeiro lugar. Quase qualquer
mandamento religioso pode ser quebrado para salvar a vida de um ser
humano.
Enquanto a Torá se esforça para
nos dizer quão importantes são alguns dos mandamentos, o início da Torá
prenuncia que salvar a vida humana será mais importante:
E criou Elohim o
homem à sua imagem; à imagem de Elohim o criou; homem e mulher os criou. (Gênesis
1:27)
Claramente, a vida de um ser
humano é especial e única e, como ficaria claro mais tarde na Torá, exige
preservação acima de qualquer outra coisa.
Essa ideia, conhecida como pikuach
nefesh, é derivada de duas fontes principais. A primeira foi preferida
pelo estudioso do século XII Maimônides,
baseada no verso em Levítico 18:5:
Portanto, os meus
estatutos e os meus juízos guardareis; os quais, observando-os o homem, viverá
por eles. Eu sou YHWH.
O sábio talmúdico Rabi Akiva
comenta que o verso diz “observando-os o homem, viverá por eles” – não “morrerá”. Construída
em cada mitsvá – com algumas exceções – está a precedência da vida
humana. Guarde o sábado – mas se você tiver que violar suas leis para realizar
uma cirurgia que salva vidas ou levar alguém ao hospital, faça-o.
Muitos rabinos, inclusive
Maimônides, aplicam esse princípio apenas à vida de um judeu. Em certo
sentido, eles estão dizendo que um judeu nunca deve cumprir um mandamento que coloque
outro judeu em risco. Ao longo dos séculos, os rabinos recorreram com
sucesso a explicações indiretas, de modo que agora há um consenso de que as
vidas dos não-judeus também devem ser salvas. Mas o núcleo desse primeiro
entendimento é a ideia de que pikuach nefesh é basicamente um conceito
judaico embutido em mandamentos que se aplicam apenas aos judeus.
Esta leitura de pikuach nefesh
nos diz claramente que os mandamentos não são sobre restrições à vida – embora
possam restringir nossas ações até certo ponto – nem são sobre nos afastar da
vida. Em vez disso, supõe-se que as mitsvot (mandamentos) nos
capacitam a viver à imagem de Elohim em toda a extensão possível, para ser parte
integrante da vida neste mundo. Se uma mitsvá corre o risco de nos
impedir de viver, ela é afastada por pikuach nefesh, a preocupação
suprema com a vida. Essa compreensão nos leva a refletir sobre nossas
próprias vidas: estamos afirmando a vida? Estamos agindo de uma maneira
que celebra a vida infundida por Elohim que nos foi dada?
A segunda fonte, preferida pelo
sábio do século XIII Nahmanides,
também é de Levítico: “o estrangeiro e o cidadão morarão com você”. De
acordo com o Talmud, este versículo nos diz que temos um mandamento positivo
para preservar a vida, mesmo que isso signifique violar outros mandamentos
rituais ou éticos. Ao contrário de ser uma exceção embutida a todos os
mandamentos, essa fonte nos diz que salvar vidas é um mandamento positivo por
si só.
Nahmanides deixa claro que isso
se aplica tanto aos gentios quanto aos judeus. Somos todos seres humanos
criados à imagem de Elohim. Seja judeu ou não, cidadão ou estrangeiro, o
mandamento de salvar uma vida é preeminente.
Esse entendimento comunitário de pikuach
nefesh nos ensina que não devemos apenas celebrar mitzvot como
afirmação de nossa criação à imagem de Elohim, mas também como veículos para
afirmar que outros são criados à imagem de Elohim também. Nossa tradição
visa criar uma sociedade que celebre a criação de toda a humanidade. A
interpretação de Nahmanides nos pergunta: Estamos criando uma sociedade nos
princípios de pikuach nefesh, onde todos estão cuidando da vida,
segurança e bem-estar do “estrangeiro e do cidadão” ao nosso redor?
Claro, nada no judaísmo é tão
simples – nem deveria ser. Portanto, há exceções para pikuach nefesh. O
Talmud nos diz que uma pessoa não pode matar outra pessoa para salvar
sua própria vida. O adultério e a idolatria também são excluídos; de
acordo com a maioria das autoridades, uma pessoa deve desistir de sua vida em
vez de violar essas proibições. O Talmud também nos diz que se a
violação for pública – e especialmente se for um momento em que as autoridades
dominantes estão tentando fazer com que os judeus violem os mandamentos da Torá
– você deve desistir de sua vida em vez de cometer a menor infração.
Há uma outra exceção importante
para salvar a vida, conforme declarado pelo rabino Akiva: se a escolha for
entre salvar sua própria vida ou a de outra pessoa, salve a sua
primeiro. Se você estiver no deserto e tiver apenas uma garrafa de água e
precisar de tudo para sobreviver, beba a água – mesmo que isso signifique que
seu amigo fique preso sem água e morra.
Tudo isso foi muito debatido no
período medieval porque a ideia básica de nunca ter um mandamento à custa da
vida humana era tão central. Nossa tradição simplesmente não pode
concebê-lo em um mundo normal. No final da Idade Média, o rabino Menachem
Meiri disse que, embora o Talmud parecesse excluir muitos não-judeus das
leis de pikuach nefesh, se ele soubesse das sociedades civilizadas da
era de Meiri (e da nossa), teria sido mais explícito que todos que vivem na
sociedade civilizada, judeus ou não judeus, são abrangidos pela lei de pikuach
nefesh. Suas vidas devem ser salvas, mesmo que isso signifique violar
quase todos os mandamentos centrais do judaísmo.
Meiri entendeu que pikuach nefesh
não é uma brecha. É uma maneira de ver a santidade da vida humana como
central para nossa tradição, nossa sociedade e nossos mandamentos.
Rabino Asher Lopatin
O rabino Asher Lopatin é o
fundador e líder espiritual de Kehillat Etz Chayim em Detroit e o fundador do
Detroit National Center for Civil Discourse. Ele é o ex-presidente da
escola rabínica Yeshivat Chovevei Torá.
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