Era uma vez um rei que viveu
há muito tempo, em uma época na qual as pessoas ainda não usavam sapatos. Certo
dia, o rei saiu em viagem para algumas áreas bem distantes no seu reinado.
Quando retornou ao palácio, reclamou que seus pés estavam terrivelmente
doloridos, porque era a primeira vez que fazia uma viagem tão longa e havia
muitos pedregulhos na áspera estrada. Ele não parava de reclamar, inconformado
com as condições das estradas. Ele também estava inconformado que nunca ninguém
tinha pensado nisso e tomado nenhuma atitude. Em um momento de impaciência,
exigiu que algo fosse feito. Ordenou aos seus servos que cobrissem todas as
estradas do reino com couro. Assim, quando caminhasse, não machucaria os pés.
Porém, os servos do rei
fizeram as contas e perceberam que, para colocar esta ideia em prática, seria
necessário matar milhares de vacas. Além disso, custaria uma quantia enorme de
dinheiro e seria necessária uma manutenção constante, pois com as chuvas e o
calor extremo, o couro começaria a se deteriorar rapidamente. Então, um dos
mais sábios entre os servos do rei levantou-se e ousou falar:
- Rei, me perdoe pela
intromissão, mas por que temos que gastar essa quantia enorme de dinheiro?
Tenho uma ideia melhor. Por que não mandamos cortar um pequeno pedaço de couro,
suficiente para cobrir seus pés?"
Esta ideia "genial"
se aplica a cada um de nós. Ao invés de tentarmos resolver todos os defeitos de
todas as pessoas do mundo, ao invés de passarmos o tempo inteiro reclamando de
tudo e de todos, por que não começamos resolvendo os nossos próprios problemas
e defeitos?
Nesta semana lemos a Parashat Terumá
(literalmente "Oferta"), que descreve as ordens de Elohim para
Moshé (Moisés) em relação à construção do Mishkan, o Templo Móvel
(Tabernáculo). Além de uma estrutura desmontável, o Mishkan também continha
muitos utensílios utilizados no Serviço a Elohim, como o Aron HaKodesh
(Arca Sagrada), o Mizbeach (Altar) e a Menorá. A Parashat se
alonga em todos os detalhes de cada uma das partes que compunham o Mishkan.
Explica o Rav Simcha Zissel Ziv
Broida zt"l (Lituânia, 1824 - 1898), mais conhecido como Alter MiKelm, que
há muitos paralelos entre o Mishkan e o povo judeu. Por exemplo, a parte
mais importante do Mishkan era o Aron HaKodesh. Isto é comprovado
pelo fato de Elohim ter começado a descrição da construção do Mishkan
justamente pelo Aron HaKodesh.
Além disso, havia também vários
outros elementos do Serviço a Elohim, como a Shulchan (uma mesa de
madeira revestida de ouro), o Mizbeach (altar de cobre, onde eram
queimados os Korbanót), o Ketoret (incenso, que deixava um cheiro
agradável) e o sal (usado nos Korbanót). Porém, todos estes elementos,
inclusive a própria estrutura do Mishkan, eram secundários diante do Aron
HaKodesh, que ficava no local mais sagrado, o Kodesh HaKodashim (Santo
dos Santos), e dentro dele ficava a Torá.
De maneira semelhante, a parte
mais importante do povo judeu deve ser sempre a nossa Torá. Ela deve ser o
centro de nossas vidas. Mesmo que existem muitos elementos que compõem nossa
vida, como o trabalho, a alimentação e os momentos de lazer, tudo deve ser
considerado secundário perante a Torá. E, da mesma forma que o Aron HaKodesh
se revestia de Kedushá (santidade) e cumpria seu propósito quando a Torá
era colocada dentro dele, assim também o judeu se santifica e cumpre seu
objetivo quando se preenche com Torá.
Há outro detalhe interessante do Aron
HaKodesh no qual há um paralelo com o ser humano. O Aron HaKodesh
era feito de madeira, porém ele era revestido de ouro por dentro e por fora,
conforme está escrito: "Por dentro e por fora o revestirá" (Shemot
25:11). Entendemos que o Aron HaKodesh deveria ser revestido de ouro
por fora, para que fosse um utensílio bonito, o que trazia honra para Elohim.
Porém, por que era necessário revestir de ouro por dentro também?
Explica o Talmud (Yomá
72b) que este versículo está nos ensinando algo importante para as nossas
vidas. Muitas vezes nos comportamos de certa maneira "por fora",
mas por dentro não mantemos a mesma convicção. Cumprimos as Mitzvót com
todas as rigorosidades quando as pessoas estão olhando, mas quando estamos
sozinhos somos mais lenientes. O Talmud vai ainda mais longe e afirma que "todo
Talmid Chacham (estudante de Torá) cujo interior não é como seu exterior não é
considerado Talmid Chacham".
O Talmud chega a afirmar
que a pessoa que por dentro não é como o que aparenta por fora é uma abominação
aos olhos de Elohim. Porém, o que significa alguém cujo interior não é igual ao
exterior? É alguém que se ocupa do estudo da Torá e do cumprimento das Mitzvót
(Mandamentos), porém não tem temor a Elohim em seu coração. Isto significa
que toda a sua ocupação com a Torá e as Mitzvót são apenas atitudes
externas, quase um "teatro", pois as motivações da pessoa são
equivocadas.
Em relação a este assunto, o Talmud
(Brachót 28a) conta uma interessante história da época em que Raban Gamliel era
o líder do povo judeu. Ele então fez um anúncio público:
"Todo
estudante de Torá que não tem seu interior como seu exterior não deve entrar no
Beit Midrash (Centro de estudos de Torá)".
Inclusive, um guardião foi
colocado na porta, para que as pessoas inaptas não pudessem entrar. Somente
após algum tempo, quando o Rabi Elazar ben Azaria se tornou o líder do povo
judeu, então esse guardião das portas do Beit Midrash foi retirado e foi
dada a permissão para que todos aqueles que desejassem pudessem entrar no Beit
Midrash e estudar Torá. O Talmud ainda acrescenta que naquele dia
foram colocados muitos bancos no Beit Midrash, para que os novos
estudantes pudessem se sentar.
Porém, quando lemos este
acontecimento no Talmud, inevitavelmente surge um questionamento: quem era este
incrível guardião, que ficava na porta do Beit Midrash e era capaz de discernir,
em cada estudante de Torá que pretendia entrar, se seu interior era igual ao
seu exterior, isto é, se ele realmente tinha temor a Elohim e estava estudando
Torá com as motivações corretas? Quem tinha o incrível dom de ler os
pensamentos de cada um?
Responde o Rav Alexander Zusia
Friedman zt"l (Polônia, 1897 - 1943) que, na verdade, este "guardião"
não era uma pessoa de carne e osso, e sim a própria porta do Beit Midrash.
Ela ficava trancada, com diversos tipos de trancas, e sua abertura era extremamente
difícil. A única forma de entrar era através de muitos esforços e tentativas.
Portanto, somente aqueles que vinham estudar com a máxima vontade e seriedade
conseguiam ter a perseverança e a paciência para entrar, como ensinam os nossos
sábios: "Nada pode impedir alguém que tem força de vontade".
Porém, há ainda um ponto difícil
de ser entendido. Quando o Talmud quis mostrar a diferença que ocorreu após o
Rabi Elazar ben Azaria ter assumido a liderança do povo judeu, por que foi
ressaltado o número de bancos acrescentados ao Beit Midrash, ao invés de ter
sido ressaltado o número de novos alunos que começaram a frequentar o Beit
Midrash a partir daquele dia?
Responde o Rav Guedalia Aizman
Shlita que possivelmente o Talmud está nos ensinando uma lição muito
profunda sobre a psicologia do ser humano. Talvez o aumento do número de bancos
no Beit Midrash não está relacionado com o aumento do número de alunos,
e sim com a mudança do tipo de alunos que passaram a frequentar o Beit
Midrash.
Até aquele momento, como havia um
"guardião" na porta do Beit Midrash, somente entravam
as pessoas que estavam realmente motivadas "Leshem Shamaim"
(em nome de Elohim, isto é, com intenções puras), cujo interior era igual ao
exterior. Eles estavam tão motivados que poderiam, com alegria, sentar-se no
chão do Beit Midrash e passar horas estudando. A vontade deles de
estudar Torá era tão pura que isso dava a eles a força para estudar em qualquer
situação, mesmo se faltassem bancos. Portanto, até aquele momento não havia
nenhuma reclamação em relação às condições físicas do local de estudo.
Porém, a partir do momento em que
começaram a entrar no Beit Midrash pessoas cujo interior não era como o
exterior, apesar de também estarem vindo com a vontade de estudar, de qualquer
maneira não fariam isto "a qualquer custo". Quando entraram no
Beit Midrash e perceberam que não havia bancos para todos se sentarem,
começaram a reclamar. Foi neste momento que surgiu, portanto, a necessidade de
serem trazidos mais bancos.
Ao ressaltar os bancos e não os
novos alunos, o Talmud está nos transmitindo uma mensagem incrível. A
pessoa que está no mundo pelos motivos corretos, isto é, a pessoa que sabe com
claridade que tem um objetivo espiritual a cumprir e entende que a Torá deve
ser o centro de sua vida, ela não se incomoda muito com o que acontece à sua
volta e, por isso, não reclama. Ela sabe identificar bem o que é o principal e
o que é o secundário e, por isso, ajusta sempre o seu foco e seus esforços na
direção correta.
Portanto, quando vemos uma pessoa
que está sempre reclamando muito, de tudo e de todos, é um sinal de que ela não
está conseguindo viver "Leshem Shamaim", isto é, ela não tem
claridade do que veio fazer no mundo. Estas pessoas, ao invés de quererem
consertar todos os erros e problemas que enxergam nos outros, deveriam começar
consertando a si mesmas. Pois, com o foco correto, elas perceberiam que a vida
é bem melhor do que parece.
R' Efraim Birbojm
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