Os falecidos Maurice e Vivienne
Wohl foram um dos casais mais notáveis que já conheci. Maurice era quieto,
introspectivo, reflexivo e reservado, enquanto Vivienne era extrovertida e
vivaz, uma pessoa do povo no sentido mais verdadeiro. Eles se complementavam
perfeitamente: duas metades de um todo.
O que os tornava especiais,
externamente, residia no fato de serem doadores em escala monumental. Em
Israel, por exemplo, eles doaram o jardim de rosas de 19 acres ao lado do
Knesset e o impressionante centro cultural projetado por Daniel Libeskind na
Universidade Bar Ilan. Eles também doaram instalações médicas em Tel Aviv e
Jerusalém, bem como no King's College e University College, em Londres. Eles
apoiaram escolas judaicas na Grã-Bretanha e em Israel – e tudo isso mal toca a
superfície de sua filantropia.
O que foi realmente emocionante,
no entanto, foi como eles se tornaram um casal em primeiro lugar, porque
Vivienne era décadas mais nova que Maurice. Quando se conheceram, Maurice tinha
quase quarenta anos, um homem de negócios dedicado, aparentemente destinado a
uma vida de solteiro. Vivienne, com menos de 20 anos, era filha de amigos de
Maurice que perguntaram se ela poderia trabalhar para ele durante as férias.
Um dia, Maurice se ofereceu para
levá-la para almoçar. A caminho do restaurante, passaram por um mendigo na rua.
Maurice deu-lhe uma moeda e continuou andando. Vivienne parou e perguntou a
Maurice se ele faria a gentileza de lhe dar o salário desta semana adiantado.
Maurice entregou o dinheiro. Ela então voltou e deu tudo ao mendigo. "Porque
você fez isso?" perguntou Maurice. "Porque o que você deu a
ele não foi suficiente para fazer uma mudança em sua vida. Ele precisava de
algo mais."
Quando a semana terminou, Maurice
disse a Vivienne: "Eu não vou lhe dar mais nenhum salário esta semana,
porque você deu o dinheiro e eu não quero lhe roubar a mitsvá". Mas
foi então que ele decidiu que deveria se casar com ela, porque, como ele me
disse pouco antes de morrer, "o coração dela era maior que o meu".
Conto esta história porque
ilustra uma dimensão da Parashá Behar que muitas vezes perdemos.
Levítico 25 trata de um problema que é tão grave hoje como era há 33 séculos. É
sobre as inevitáveis desigualdades que surgem em toda economia de livre
mercado. A economia de mercado é boa na criação de riqueza, mas ruim na
distribuição. Qualquer que seja o ponto de partida, as desigualdades surgem
cedo entre os mais e os menos bem-sucedidos, e se tornam mais pronunciadas com
o tempo.
A desigualdade econômica leva à
desigualdade de poder, e o resultado é muitas vezes o abuso dos fracos pelos
fortes. Este é um refrão constante dos profetas. Amós fala daqueles que “vendem
o inocente por dinheiro, e o necessitado por um par de sapatos; que pisam a
cabeça do pobre como o pó da terra, e negam justiça aos oprimidos” (Amós
2:6-7). Isaías clama: "Ai dos que fazem leis injustas e emitem decretos
opressivos [...] tornando as viúvas sua presa e roubando os órfãos"
(Is. 10:1-2), [...] “cobiçam casas, e arrebatam-nas; assim fazem violência a
um homem e à sua casa, a uma pessoa e à sua herança” (Miquéias 2:2).
Este é um problema para quase
todas as sociedades e idades. O que torna a Torá distinta é que ela recusa uma
resposta unidimensional para o que é um problema genuinamente complexo. A
igualdade é um valor, mas a liberdade também o é. O comunismo e o socialismo
foram tentados e falharam; mas o livre mercado também gera seus
descontentamentos. Um princípio que pode ser inferido do Tanach é que o mercado
foi feito para servir aos seres humanos; os seres humanos não foram feitos para
servir ao mercado. A questão fundamental é, portanto: o que melhor serve a
humanidade sob a soberania de Elohim?
Uma leitura cuidadosa da Parashá
revela que a abordagem da Torá a esta questão opera em três níveis
completamente diferentes. Uma é política, a segunda é psicológica e a terceira
é teológica.
O primeiro nível é simples. A Parashá
propõe dois ciclos de redistribuição, Shemitá (Ano Sabático) e Yovel (Jubileu),
o sétimo e o quinquagésimo ano. A intenção aqui é restaurar a igualdade de
condições por meio de uma combinação de remissão de dívidas, libertação de
escravos e devolução de terras ancestrais a seus proprietários originais. Esta
é uma forma de corrigir as desigualdades acumuladas sem intervenção constante
na economia. Essa é a dimensão política.
A dimensão psicológica é o que os
revolucionários franceses chamavam de fraternidade. Dez vezes as leis em Behar
usam a palavra "irmão". "Não engane seu irmão."
"Se seu irmão ficar pobre." "O redentor mais próximo virá e
resgatará o que seu irmão vendeu." Esta é uma lógica evolucionária
sólida. Sabemos pelo trabalho de W. D. Hamilton e outros sobre seleção de
parentesco, que o condutor mais básico do altruísmo é a família. Fazemos
sacrifícios mais prontamente por aqueles mais próximos a nós.
É por isso que, em grande medida,
desde o início da história judaica até hoje, os judeus se consideram uma única
família, descendentes de Abraão, Isaque e Jacó, Sara, Rebeca, Raquel e Lia. Uma
coisa é legislar o altruísmo, por meio de instituições como o sétimo e o quinquagésimo
ano. Outra é estruturar uma sociedade de forma a fazer com que as pessoas se
sintam unidas por um vínculo inquebrável de responsabilidade compartilhada. Daí
as narrativas de Gênesis, focadas predominantemente no povo de Israel não como
nação, mas como família. Lei e narrativa aqui andam de mãos dadas. Porque todo
o povo judeu é uma única família vastamente extensa e, portanto, devemos ajudar
quando um de nossos irmãos ou irmãs se torna indigente. Esta é a etnicidade a
serviço da moralidade.
Finalmente, porém não menos
importante, vem a dimensão teológica. Pois é aqui, em Lev. 25, que ouvimos com
lucidez incomparável o que acredito ser o princípio mais fundamental da lei
bíblica. Ouça com atenção estas duas passagens, a primeira sobre a terra, a
segunda sobre os escravos hebreus:
A terra não será
vendida perpetuamente, porque a terra é minha: vocês são estrangeiros e
peregrinos comigo. (v. 23)
Se teu irmão
empobrecer e se vender a ti, não o escravizarás[...] pois são meus servos que
tirei da terra do Egito; não serão vendidos como escravos. Não governarás sobre
ele impiedosamente, mas temerás o teu Elohim. (vv. 39-43).
A Torá está fazendo um ponto
radical. Não existe propriedade absoluta. Não deve haver domínio na terra de
Israel porque a terra pertence, em última análise, a Elohim. Nem pode um
israelita possuir outro israelita porque todos nós pertencemos a Elohim, e
temos feito isso desde que Ele tirou nossos ancestrais da escravidão no Egito.
É este princípio que por si só dá
sentido à narrativa da Torá sobre a criação do Universo. A Torá não é um livro
de ciência. É um livro de direito. Isso é o que a palavra "Torá"
significa. Segue-se que o capítulo de abertura da Torá não é um relato científico,
mas legal. Não é uma resposta à pergunta: "Como o universo
nasceu?" É uma resposta a uma pergunta inteiramente diferente: "Com
que direito Elohim ordena os seres humanos?" A resposta é: porque Ele
criou o Universo. Portanto, Ele é dono do Universo. Ele tem o direito de
estabelecer as condições nas quais Ele nos permite habitar o universo. Esta é a
base de toda a lei bíblica.
Em nenhum lugar isso é mais claro
do que na Parashat Behar, onde se torna a base da legislação sobre
propriedade da terra e escravidão. A lei judaica baseia-se no princípio de que
somente Elohim possui alguma coisa. O que possuímos, não possuímos, mas apenas
mantemos em confiança. É por isso que o conceito de tzedek/tzedaká
é intraduzível para o português, porque significa justiça e caridade. Em português,
justiça e caridade são radicalmente diferentes. Fazemos justiça porque devemos;
fazemos caridade porque podemos. Se eu lhe der 1.000 reais porque devo isso a
você, isso é justiça. Se eu lhe der a mesma quantia porque não lhe devo nada,
mas acho que você precisa, isso é caridade. Um ato pode ser um ou outro, mas
não ambos.
No judaísmo, ao contrário, o que
possuímos não é nosso. Pertence a Elohim. Ele simplesmente o colocou em nossa
custódia. Estamos cuidando disso em nome de Elohim. Uma das condições dessa
confiança é que, se temos mais do que precisamos, devemos compartilhá-lo com
aqueles que têm menos do que precisam. Isso é tzedaká: justiça e
caridade combinadas.
Foi assim que Maurice e Vivienne
Wohl viveram suas vidas. Elohim dera sucesso a Maurice, e ele sabia que a
riqueza que acumulara não era realmente sua. Elohim havia dado a ele para
cuidar, confiando que ele a usaria com sabedoria para melhorar a vida de
outros. Maurice, no entanto, foi honesto o suficiente para perceber que ele
provavelmente era melhor em ganhar dinheiro do que doá-lo, e que se ele não o
desse para as pessoas ou para as causas que precisavam dele, ele estava
falhando em seu dever para com Elohim e seus semelhantes. É por isso que,
quando conheceu Vivienne e viu como ela compreendia com sensibilidade as
necessidades dos outros e como estava disposta a fazer sacrifícios por eles,
ele sabia que tinha que se casar com ela. Assim, ao longo de seus quase 40 anos
juntos, eles usaram as bênçãos que Elohim lhes deu para trazer bênçãos à vida
de outras pessoas.
A verdade maior da Parashá
Behar é que você não pode criar uma sociedade justa apenas por medidas
políticas (remissão de dívidas, restauração de propriedade ancestral e assim
por diante). Há dimensões psicológicas e teológicas que também são vitais.
Mas em um nível pessoal simples,
contém uma ideia genuinamente transformadora. Pense no que você possui não como
algo que você possui, mas como algo que você confia para o benefício, não
apenas de você e de sua família, mas também de outros. Na vida, não pergunte, o
que posso ganhar? Mas o que posso dar? Você viajará com mais leveza e com maior
alegria. Você melhorará a vida dos outros. Você sentirá que sua vida valeu a
pena. Dificilmente qualquer um de nós pode dar na escala de um Maurice ou
Vivienne Wohl, mas quando se trata de dar, a escala não importa.
Seja uma bênção para os outros e
você descobrirá que a vida tem sido uma bênção para você.
Rabino Lord Jonathan Sacks
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