Abraão foi o primeiro grande
líder do futuro povo judeu. Ele assumiu a responsabilidade e não esperou que
outros agissem.
A história inicial da humanidade
é apresentada pela Torá por uma sequência de decepções. Elohim deu liberdade
aos seres humanos e eles a usaram mal. Adão e Eva comeram o fruto proibido.
Caim assassinou Abel. Dentro de um tempo relativamente curto, o mundo antes do
Dilúvio tornou-se dominado pela violência. Toda carne perverteu seu caminho na
terra. Elohim criou a ordem, mas os humanos criaram o caos. Mesmo depois do
Dilúvio, a humanidade, na forma dos construtores de Babel, foi culpada de
arrogância, pensando que as pessoas poderiam construir uma torre que “atingisse
o céu” (Gn 11:4).
Os humanos falharam em responder
a Elohim, que é onde Abraão entra em cena. Não temos certeza, no início, para o
que Abraão é convocado a fazer. Sabemos que ele é ordenado a deixar sua terra,
local de nascimento e casa de seu pai e viajar “para a terra que eu lhe
mostrarei” (Gn 12:1), mas o que ele deve fazer quando chegar lá, não
sabemos. Sobre isso a Torá é silenciosa. Qual é a missão de Abraão? O que o
torna especial? O que o torna mais do que um bom homem em uma época ruim, como
foi Noé? O que o torna um líder e pai de uma nação?
Para decodificar o mistério,
temos que lembrar o que a Torá tem sinalizado antes deste ponto. E a chave aqui
é a falta de responsabilidade. Adão e Eva carecem de responsabilidade pessoal.
Adão diz: “Não fui eu; foi a mulher. “ Eva diz: “Não fui eu, foi a
serpente”. É como se negassem ser os autores de suas próprias histórias –
como se não entendessem nem a liberdade nem a responsabilidade que ela implica.
Caim não nega responsabilidade
pessoal. Ele não diz: “Não fui eu. A culpa foi do Abel por me provocar”.
Em vez disso, ele nega a responsabilidade moral: “Sou eu o guardião do meu irmão?
”
Noé falha no teste de
responsabilidade coletiva. Ele é um homem de virtude em uma época de vício, mas
não causa impacto em seus contemporâneos. Ele salva apenas sua família (e os
animais) e ninguém mais. De acordo com a leitura simples do texto, ele nem
tenta.
Se entendermos isso, entenderemos
Abraão. Ele exerce responsabilidade pessoal. Na Parashá Lech Lecha, uma briga
irrompe entre os pastores de Abraão e os de seu sobrinho Ló. Vendo que isso não
era uma ocorrência aleatória, mas o resultado de terem muito gado para estarem
juntos, Abraão imediatamente propõe uma solução. Abrão diz a Ló:
E disse Abrão a
Ló: Ora, não haja contenda entre mim e ti, e entre os meus pastores e os teus
pastores, porque somos irmãos. Não está toda a terra diante de ti? Eia, pois,
aparta-te de mim; e se escolheres a esquerda, irei para a direita; e se a
direita escolheres, eu irei para a esquerda. Gênesis 13:8,9
Observe que Abraão não julga. Ele
não pergunta de quem foi a culpa. Ele não pergunta quem ganhará com qualquer
resultado em particular. Ele dá a Ló a escolha. Ele vê o problema e age.
No próximo capítulo de Bereshit/Gênesis,
somos informados sobre uma guerra local, como resultado da qual Ló está entre
as pessoas capturadas. Imediatamente Abraão reúne uma força, persegue os
invasores, resgata Ló e com ele todos os outros cativos. Ele devolve esses
cativos em segurança para suas casas, recusando-se a receber qualquer um dos
despojos da vitória que lhe é oferecido pelo agradecido rei de Sodoma.
Esta é uma passagem estranha –
retrata Abraão de forma muito diferente do pastor nômade que vemos em outros
lugares. A passagem é melhor compreendida no contexto da história de Caim.
Abraão mostra que ele é o guardião de seu irmão (ou filho do irmão). Ele
compreende imediatamente a natureza da responsabilidade moral. Apesar do fato
de que Ló escolheu viver onde morava com os riscos inerentes, Abraão não diz: “Sua
segurança é responsabilidade dele, não minha”.
Então, na Parashá Vayera desta
semana, vem o grande momento. Elohim está prestes a julgar Sodoma. Abraão,
temendo que isso signifique na destruição da cidade, diz:
E chegou-se
Abraão, dizendo: Destruirás também o justo com o ímpio? Se porventura houver cinquenta
justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos cinquenta
justos que estão dentro dela? Longe de ti que faças tal coisa, que mates o
justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não faria
justiça o Juiz de toda a terra? Gênesis 18:23-25
Este é um discurso notável. Com
que direito um mero mortal desafia o próprio Elohim? A resposta curta é que o
próprio Elohim sinalizou que deveria. Ouça com atenção o texto. Então o Senhor
disse:
E disse o Senhor: Ocultarei eu
a Abraão o que faço, visto que Abraão certamente virá a ser uma grande e
poderosa nação, e nele serão benditas todas as nações da terra? Porque eu o
tenho conhecido, e sei que ele há de ordenar a seus filhos e à sua casa depois
dele, para que guardem o caminho do Senhor, para agir com justiça e juízo; para
que o Senhor faça vir sobre Abraão o que acerca dele tem falado. Disse mais o
Senhor: Porquanto o clamor de Sodoma e Gomorra se tem multiplicado, e porquanto
o seu pecado se tem agravado muito, descerei agora, e verei se com efeito têm
praticado segundo o seu clamor, que é vindo até mim; e se não, sabê-lo-ei.
Gênesis 18:17-21
Essas palavras: “Ocultarei eu
a Abraão o que faço?” é uma indicação clara de que Elohim quer que Abraão
responda; caso contrário, por que Ele as teria dito?
Esse trecho só pode ser compreendido
tendo como pano de fundo a história de Noé. Lá também, Elohim disse a Noé, com
antecedência, que ele estava prestes a trazer punição ao mundo. Então Deus
disse a Noé:
Então disse Elohim
a Noé: O fim de toda a carne é vindo perante a minha face; porque a terra está
cheia de violência; e eis que os desfarei com a terra. Gênesis 6:13
Noé não protestou. Ao contrário,
somos informados três vezes que Noé “fez como Elohim lhe ordenou” (Gn
6:22 ; 7:5; 7:9). Noé aceitou o veredito. Abraão o desafiou. Abraham entendeu o
terceiro princípio que temos explorado nas últimas semanas: responsabilidade coletiva.
O povo de Sodoma não era irmão e
irmã de Abraão, então ele estava indo além do que fez ao resgatar Ló. Ele orou
por eles porque entendeu a ideia de solidariedade humana, expressa de forma
imortal por John Donne:
Nenhum homem é uma
ilha,
Inteira em si
mesma...
A morte de
qualquer homem me diminui,
Pois estou
envolvido na humanidade.1
Mas fica uma pergunta. Por que Elohim
chamou Abraão para desafiá-lo? Havia alguma coisa que Abraão sabia que Elohim
não sabia? Essa ideia é absurda. A resposta: Abraão se tornaria o modelo e o
iniciador de uma nova fé, que não defenderia o status quo humano, mas o
desafiaria.
Abraão teve que ter a coragem de
desafiar a Elohim se seus descendentes quisessem desafiar os governantes
humanos, como fizeram Moisés e os Profetas. O povo judeu não aceita o mundo como
está. Eles o desafiam em nome do mundo que deveria ser. Este é um ponto de
virada crítico na história humana: o nascimento da primeira religião de
protesto do mundo e o surgimento de uma fé que desafia o mundo em vez de
aceitá-lo.
Abraão não era um líder
convencional - ele não governou uma nação, pois ainda não havia nação para ele
liderar. Mas ele é o modelo de liderança como o judaísmo o entende. Ele assumiu
a responsabilidade; Ele agiu; Ele não esperou que os outros agissem.
De Noé, a Torá diz, “ele andou
com Elohim” (Gn 6:9). Mas a Abraão, Deus diz: “Anda diante de mim”
(Gn 17:1), significando seu chamado para a liderança. Caminhe em frente. Assuma
a responsabilidade pessoal. Assuma a responsabilidade moral. Assuma a
responsabilidade coletiva.
O judaísmo é o chamado de Elohim
para a responsabilidade.
Rabino Lord Jonathan
Sacks
Texto revisado por Francisco
Adriano Germano
Profundo chamado à responsabilidade moral e coletiva, altruísta, como Yeshua cumpriu perfeitamente.
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