Houve momentos em que uma
passagem da parashá desta semana foi, para mim, pouco menos do que salvar
vidas. Nenhuma posição de liderança é fácil. E a liderança espiritual pode ser
a mais difícil de todas.
Embora a imagem pública dos
líderes geralmente os apresente como figuras calmas, otimistas e serenas, a
realidade por trás dessa fachada é bem diferente. Todos nós, em algum momento
da vida, experimentamos um turbilhão de emoções ao nos depararmos com a gravidade
das divisões sociais, a complexidade dos desafios que enfrentamos e a
fragilidade do terreno em que pisamos. São momentos em que a clareza sobre
nossos objetivos se choca com a insegurança sobre como alcançá-los, abrindo
caminho para o desespero.
O momento crucial da nossa
parashá se revela quando Moisés desce ao seu ponto mais baixo. A causa
precipitante, aparentemente banal, foi o murmúrio do povo em relação à comida.
Imbuídos de uma nostalgia ilusória, clamavam pelos peixes, pepinos, melões, alho-poró,
cebola e alho que consumiam no Egito. A memória da escravidão se esvaiu,
substituída unicamente pelas lembranças culinárias. Com isso,
compreensivelmente, Elohim ficou muito zangado (Núm. 11.10). Mas Moisés estava
mais do que zangado. Ele sofreu um colapso emocional completo. Ele disse isso a
Elohim:
E disse Moisés ao Senhor: Por
que fizeste mal a teu servo, e por que não achei graça aos teus olhos, visto
que puseste sobre mim o cargo de todo este povo? Concebi eu porventura todo
este povo? Dei-o eu à luz? para que me dissesses: leva-o ao teu colo, como a
ama leva a criança que mama, à terra que juraste a seus pais? De onde teria eu
carne para dar a todo este povo? Porquanto contra mim choram, dizendo: Dá-nos
carne a comer; eu só não posso levar a todo este povo, porque muito pesado é
para mim. E se assim fazes comigo, mata-me, peço-te, se tenho achado graça aos
teus olhos, e não me deixes ver o meu mal.
Números 11.11-15
Para mim, este texto serve como
um farol em meio à escuridão do desespero. Sempre que me sentia incapaz de
seguir em frente, relia essa passagem e pensava: "Se ainda não cheguei
a esse ponto, então estou bem."
De certa forma, saber que o maior
líder israelita de todos os tempos também experimentou tamanha profundeza de
sofrimento foi extremamente fortalecedor. O texto me ensinou que sentir-se
fracassado não significa, necessariamente, ter falhado. Significa apenas que o
sucesso ainda não foi alcançado. E, ainda mais importante, não significa ser um
fracasso. Na verdade, o fracasso é algo comum àqueles que ousam correr
riscos, e a coragem de arriscar-se é absolutamente essencial para quem deseja,
mesmo que minimamente, causar um impacto positivo no mundo.
O que chama a atenção no Tanach
(o chamado “Antigo Testamento”) é a maneira como ele documenta essas
noites escuras da alma na vida de alguns dos maiores heróis bíblicos. Moisés
não foi o único profeta a orar para morrer. Três outros fizeram o mesmo: Elias
(1 Reis 19.4), Jeremias (Jr. 20.7-18) e Jonas (Jn. 4:3) 1.
Os Salmos, especialmente os
atribuídos ao Rei Davi, são repletos de momentos de desespero:
Elohim meu, Elohim
meu, por que me desamparaste? Por que te alongas do meu auxílio e das palavras
do meu bramido?
Salmo 22.2
Das profundezas a
ti clamo, ó YHWH
Salmo 130.1
Livre entre os
mortos, como os feridos de morte que jazem na sepultura, dos quais te não
lembras mais, e estão cortados da tua mão. Puseste-me no abismo mais profundo,
em trevas e nas profundezas. Sobre mim pesa o teu furor; tu me afligiste com
todas as tuas ondas.
Salmo 88.5-7
O que o Tanach nos revela por
meio de suas histórias é profundamente libertador. As Escrituras Sagradas não
se configuram como uma fórmula para a mansidão ou felicidade eterna. Elas não
garantem que você estará imune à dor e ao sofrimento. Tampouco se assemelham à
busca estóica pela apatia, uma vida sem paixões. Igualmente, não se propõem a
guiar-nos ao nirvana, extinguindo o "eu" para acalmar o fogo dos
sentimentos.
Ao contrário, o Tanach nos
convida a enfrentar a realidade com honestidade e coragem. Reconhece as
dificuldades e sofrimentos inerentes à vida humana, sem oferecer promessas
vazias de fuga ou negação da dor. Através da narrativa de personagens
imperfeitos e situações desafiadoras, as Escrituras nos impulsionam a buscar a
verdade, mesmo quando ela é difícil ou dolorosa.
A maioria das religiões trata de
aceitar o mundo como ele é, porém, a Bíblia é um protesto contra o mundo
que existe em nome do mundo que deveria existir. Ser um crente significa buscar
a transformação, impulsionar mudanças positivas e amenizar as feridas do nosso
mundo fragilizado. No entanto, a mudança nem sempre é bem-vinda, e por isso
figuras como Moisés, Davi, Elias e Jeremias enfrentaram tamanha resistência em
suas jornadas.
Podemos dizer precisamente o que
levou Moisés ao desespero. Ele já havia enfrentado um desafio semelhante antes.
Lá no livro do Êxodo o povo fez a mesma reclamação:
E os filhos de
Israel disseram-lhes: Quem dera tivéssemos morrido por mão do Senhor na terra
do Egito, quando estávamos sentados junto às panelas de carne, quando comíamos
pão até fartar! Porque nos tendes trazido a este deserto, para matardes de fome
a toda esta multidão.
Êxodo 16:3
Moisés, naquela ocasião, não
passou por nenhuma crise. As pessoas estavam com fome e precisavam de comida.
Esse foi um pedido legítimo.
Desde então, porém, eles
experimentaram os picos gêmeos da revelação no Monte Sinai e da construção do
Tabernáculo. Eles haviam chegado mais perto de Elohim do que qualquer nação
jamais havia feito antes. Nem estavam morrendo de fome. A reclamação deles não
era que não tivessem comida. Eles tinham o maná.
A reclamação deles era: “Agora
perdemos o apetite (literalmente, “nossa alma secou”); nunca vemos nada além
deste maná!” (Núm. 11.6). Eles alcançaram as alturas espirituais, mas
continuaram sendo as mesmas pessoas recalcitrantes, ingratas e mesquinhas de
antes. 2
Foi nesse momento que Moisés se
viu tomado por um sentimento de profunda frustração e desânimo. Sua missão, que
antes o motivava com fervor, agora lhe parecia fadada ao fracasso. Ele ansiava
por criar uma sociedade israelita diametralmente oposta ao Egito que os
aprisionara por tanto tempo: uma comunidade que exaltasse a liberdade em
detrimento da opressão, a dignidade em detrimento da escravidão.
No entanto, o povo israelita
resistia à mudança. Em vez de abraçar a nova realidade, refugiavam-se em uma
nostalgia absurda do Egito, idealizando memórias distorcidas de uma época
marcada por sofrimento e servidão. Ansiavam por "peixe, pepino, alho e
tudo o resto", símbolos de uma vida frugal e subjugada, ignorando as
verdadeiras atrocidades que haviam vivenciado.
Moisés, diante dessa obstinação,
foi tomado pela amarga constatação: era mais fácil libertar o povo do Egito
físico do que libertá-lo das correntes mentais e emocionais que o prendiam ao
passado. Se até então não haviam demonstrado disposição para a transformação,
era plausível que jamais a alcançassem.
Abatido, Moisés se viu defronte à
sua própria derrota. A missão que antes lhe dava propósito agora se esvaía em
desalento. Perguntava-se se havia sentido em continuar lutando contra um
inimigo tão arraigado: a nostalgia do cativeiro.
Diante desse panorama desafiador,
Elohim concedeu conforto ao seu servo. Primeiramente, orientou-o a reunir
setenta anciãos para que estes compartilhassem o peso da liderança. Em seguida,
assegurou-lhe que a fome não seria um problema, pois o povo logo teria carne em
abundância. E, de fato, suas palavras se concretizaram: uma enorme quantidade
de codornizes desceu do céu, como uma avalanche providencial.
O que é mais impressionante nesta história é que, a partir de então, Moisés parece ser um homem mudado. Quando Josué lhe informa que poderia haver um desafio à sua liderança, ele respondeu:
Porém, Moisés lhe disse: Tens tu ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor pusesse o seu espírito sobre ele! Números 11.29
No capítulo seguinte, quando seu
próprio irmão e irmã começam a criticá-lo, ele reage com total calma. Quando Elohim
pune Miriam, Moisés ora por ela. É especificamente neste ponto do longo relato
bíblico da vida de Moisés que a Torá diz:
E era o homem Moisés mui manso, mais do que todos os homens que havia sobre a terra. Números 12.3
A Torá nos presenteia com um
relato notável da complexa dinâmica das crises emocionais. Em meio ao
desespero, ela nos oferece uma mensagem crucial: a importância da companhia e
do amparo divino. Elohim, em sua infinita compaixão, assume o papel de
consolador, erguendo Moisés do abismo do desespero. Através de uma comunicação
direta, Ele acolhe as preocupações de Moisés e assegura que o futuro não será
trilhado em solidão. Haverá outros a seu lado, prontos para auxiliar e aliviar
o peso da liderança.
Em seguida, a Torá adverte Moisés
para não se deixar abater pelas murmurações do povo. Em breve, a abundância de
carne os satisfaria a tal ponto que a fome deixaria de ser um motivo de queixa.
Essa promessa serve como um bálsamo para a ansiedade de Moisés, acalmando seus
temores e reforçando a fé em um futuro promissor.
A experiência de superar o
desespero nos ensina algo profundo: quando nossa autoestima se desintegra,
somos impelidos a reconhecer que a vida não gira em torno de nós mesmos. Ela se
volta para os outros, para ideais e para um senso de missão ou vocação. O que
realmente importa é a causa, não o indivíduo. Essa é a essência da verdadeira
humildade.
Como diz o sábio ditado,
frequentemente atribuído a C.S. Lewis: "Humildade não se trata de pensar
menos de si mesmo. Trata-se de pensar menos em si mesmo."
Ao alcançar este ponto, mesmo
após as mais duras provações, você se torna mais forte do que jamais imaginou
ser possível. Você aprendeu a não se abalar por questões de autoimagem, pois
transcendeu a necessidade de se definir por ela. A verdadeira grandeza reside
em uma vida voltada para o exterior, onde o sofrimento dos outros assume um
significado maior que o seu próprio. A marca distintiva da grandeza reside na
união da força com a gentileza, formando uma das forças mais curativas da vida
humana.
Moisés, o líder lendário que
libertou o povo hebreu da escravidão no Egito, carregava consigo um fardo: a
crença de que era um fracasso. Essa narrativa, presente na Torá, serve como um
lembrete poderoso para todos nós que experimentamos momentos de desânimo e
autodúvida.
A jornada de Moisés, desde o
desespero até se tornar uma força modesta e inspiradora, representa uma das
grandes histórias psicológicas da Torá. Nela, encontramos um tutorial atemporal
sobre a esperança, um guia que nos ensina a superar os desafios e alcançar
nosso potencial.
Rabino Lord Jonathan Sacks
Revisado e adaptado por Francisco
Adriano Germano
Notas
1- O mesmo aconteceu, é claro,
com Jó, mas Jó não era um profeta, nem - de acordo com muitos comentaristas -
ele era sequer judeu. O livro de Jó trata de outro assunto, a saber: Por que
coisas ruins acontecem a pessoas boas? Essa é uma pergunta sobre Elohim, não
sobre a humanidade.
2- Observe que o texto atribui
a reclamação à asafsuf, a ralé, que alguns comentaristas consideram significar
a “multidão mista” que se juntou aos israelitas no Êxodo.
Texto maravilhoso foi um bálsamo para minha alma.
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