Levei dois anos para me recuperar
da morte de meu pai, de abençoada memória. Até hoje, quase vinte anos depois,
não sei bem por quê. Ele não morreu repentinamente ou jovem. Ele já estava na
casa dos oitenta. Nos últimos anos, ele teve que passar por cinco operações,
cada uma delas minando um pouco mais suas forças.
Senti um vazio existencial. Isso
amorteceu minhas sensações, deixando-me incapaz de dormir ou de me concentrar,
como se a vida estivesse acontecendo a uma grande distância e como se eu fosse
um espectador assistindo a um filme fora de foco e com o som desligado. Essa
condição passou, mas enquanto durou cometi alguns dos piores erros da minha
vida.
Menciono essas coisas porque elas
são o fio condutor da parashá Chukat. O episódio mais marcante é o
momento em que a população reclama da falta de água. Moisés faz algo errado, e
embora Elohim envie água de uma rocha, ele também condena Moisés a um castigo
quase insuportável:
Porque vocês não
tiveram fé suficiente em Mim para Me santificar diante dos Israelitas, portanto
vocês não trarão esta assembleia para a terra que eu te dei. Num. 20.12
Os comentaristas debatem
exatamente o que ele fez de errado. Foi porque ele perdeu a paciência com o
povo (“Ouçam agora, seus rebeldes”)? Que ele bateu na pedra em vez de falar com
ela? Que ele fez parecer que não era Elohim, mas ele e Aarão os responsáveis pela água (“Devemos tirar água desta rocha
para você?”)?
O que é ainda mais intrigante é porque
ele perdeu o controle naquele momento. Ele já havia enfrentado o mesmo problema,
mas nunca havia perdido a paciência antes. Em Êxodo 15, os israelitas em Mara
reclamaram que a água era intragável porque era amarga. No Êxodo 17, em Massá e
Merivá, reclamaram que não havia água. Elohim então disse a Moisés para pegar
seu cajado e bater na rocha, e água fluiu dele.
Então, quando em nossa parashá Elohim
diz a Moisés: “Pegue o cajado... e fale com a rocha”, foi certamente um
erro perdoável presumir que Elohim queria que ele também batesse nela. Isso foi
o que Ele disse da última vez. Moisés estava seguindo o precedente. E se Elohim
não queria que ele batesse na rocha, por que Ele ordenou que ele pegasse seu
cajado?
O que é ainda mais difícil de
entender é a ordem dos acontecimentos. Elohim já havia dito a Moisés exatamente
o que fazer. Reúna as pessoas. Fale com a rocha e a água fluirá. Isso foi antes
de Moisés fazer seu discurso mal-humorado, começando: “Ouvi agora, rebeldes...”.
É compreensível que você perca a compostura ao se deparar com um problema que
parece insolúvel. Isso havia acontecido com Moisés antes, quando o povo
reclamou da falta de carne. Mas não faz sentido fazer isso quando Elohim já lhe
disse: “Fala à rocha… Ela derramará a sua água, e tu tirarás água da rocha
para eles, e assim darás à comunidade e água para o gado beber”. Moisés
recebeu a solução. Por que então ele estava tão agitado com o problema?
Só depois que perdi meu pai é que
entendi a passagem. O que aconteceu imediatamente antes? O primeiro versículo
do capítulo afirma: “O povo parou em Cades. Lá, Miriam morreu e foi
enterrada.” Só então afirma que o povo não tinha água. Uma antiga tradição
explica que o povo até então tinha sido abençoado por uma fonte milagrosa de
água por mérito de Miriam. Quando ela morreu, a água cessou.
No entanto, parece-me que a
ligação mais profunda não reside entre a morte de Miriam e a falta de água, mas
entre a sua morte e a perda de equilíbrio emocional de Moisés. Miriam era sua
irmã mais velha. Ela zelou pelo destino dele quando, ainda bebê, ele foi
colocado em uma cesta e flutuado pelo Nilo. Ela teve a coragem e a iniciativa
de falar com a filha do Faraó e sugerir que ela fosse amamentada por uma
hebreia, reunindo assim Moisés e sua mãe e garantindo que ele crescesse sabendo
quem era e a que povo pertencia. Ele devia seu senso de identidade a ela. Sem
Miriam, ele nunca poderia ter-se tornado o rosto humano de Elohim para os
israelitas, legislador, libertador e profeta. Ao perdê-la, ele não perdeu
apenas a irmã. Ele perdeu a base humana de sua vida.
Enlutado, você perde o controle
de suas emoções. Você fica com raiva quando a situação exige calma. Você bate
quando deveria falar e fala quando deveria calar. Mesmo quando Elohim lhe disse
o que fazer, você está apenas ouvindo parcialmente. Você ouve as palavras, mas
elas não entram totalmente em sua mente. Maimônides faz a pergunta: como foi
que Jacó, um profeta, não sabia que seu filho José ainda estava vivo. Ele
responde, porque ele estava em estado de pesar, e a Shechiná (Presença Divina)
não entra em nós quando estamos em estado de pesar.
Moisés junto à rocha não era
tanto um profeta, mas um homem que acabara de perder sua irmã. Ele estava
inconsolável e sem controle. Ele foi o maior dos profetas. Mas ele também era
humano, raramente mais do que aqui.
Nossa parashá é sobre mortalidade.
Esse é o ponto. Elohim é eterno, e nós efêmeros. Como dizemos na oração Unetaneh
tokef em Rosh Hashaná e Yom Kippur, somos “um fragmento de cerâmica, uma
folha de grama, uma flor que murcha, uma sombra, uma nuvem, um sopro de vento”.
Somos pó e ao pó voltaremos, mas Elohim é vida para sempre.
Em certo nível, Moisés na rocha é
uma história sobre o pecado e o castigo: “Porque não tivestes fé suficiente
em mim para Me santificar… portanto, não trareis esta assembleia para a terra
que vos dei”. Podemos não ter certeza de qual foi exatamente o pecado, ou porque
ele mereceu uma punição tão severa, mas pelo menos conhecemos o cenário, o
território ao qual a história pertence.
No entanto, parece-me que – aqui
como em tantos outros lugares da Torá – há uma história por trás da história, e
é completamente diferente. Chukat é sobre morte, perda e luto. Míriam
morre. Aarão e Moisés são informados de que não viverão para entrar na Terra
Prometida. Aarão morre e o povo chora por ele durante trinta dias. Juntos, eles
constituíram a maior equipe de liderança que o povo israelita alguma vez
conheceu: Moisés, o profeta supremo, Aarão, o primeiro Sumo Sacerdote, e
Miriam, talvez, a maior de todos.
O que a parashá está nos dizendo
é que para cada um de nós existe um Jordão que não cruzaremos, uma terra
prometida na qual não entraremos. “Não cabe a você completar a tarefa.”
Mesmo os maiores são mortais.
É por isso que a parashá começa
com o ritual da Novilha Vermelha, cujas cinzas, misturadas com cinzas de
madeira de cedro, hissopo e lã escarlate e dissolvidas em “água viva”,
são aspergidas sobre aquele que esteve em contato com os mortos para que para
que possam entrar no Santuário.
Este é um dos princípios mais
fundamentais do Judaísmo. A morte contamina. Para a maioria das religiões ao
longo da história, a vida após a morte revelou-se mais real do que a própria
vida. É lá que vivem os deuses, pensaram os egípcios. É lá que vivem os nossos
antepassados, acreditavam os gregos e romanos e muitas tribos primitivas. É aí
que se encontra justiça, pensaram muitos cristãos. É aí que se encontra o
paraíso, pensaram muitos muçulmanos.
Com grande sutileza a Torá
mistura lei e narrativa – a lei antes da narrativa porque Elohim fornece a cura
antes da doença. Míriam morre. Moisés e Arão estão dominados pela tristeza.
Moisés, por um momento, perde o controle, e ele e Aarão são lembrados de que
eles também são mortais e morrerão antes de entrar na terra.
No entanto, este é, como disse
Maimônides, “o caminho do mundo”. Somos almas encarnadas. Somos de carne e
osso. Envelhecemos. Perdemos aqueles que amamos. Exteriormente lutamos para
manter a compostura, mas interiormente choramos. No entanto, a vida continua, e
o que começamos, outros continuarão.
Aqueles que amamos e perdemos
vivem em nós, assim como viveremos naqueles que amamos. Pois o amor é tão forte
quanto a morte (Ct 8.6) e o bem que fazemos nunca morre (Pv 10.2; 11.4).
Rabino Lord Jonathan Sacks
Texto revisado e adaptado por
Francisco Adriano Germano
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