A escuridão não pode expulsar
a escuridão: somente a luz pode fazer isso. O ódio não pode expulsar o ódio:
somente o amor pode fazer isso. O ódio multiplica o ódio, a violência
multiplica a violência, e a dureza multiplica a dureza...
Martin Luther King
Imagino que uma das razões
pelas quais as pessoas se apegam ao ódio com tanta teimosia é porque elas
sentem que, quando o ódio acaba, elas serão forçadas a lidar com a dor.
James Arthur Balduíno
Há um verso em Ki Tetse,
importante em suas implicações. Escondida entre leis sobre herança, filhos
desobedientes, animais e casamento, a ordem de Moisés passa quase despercebida.
Sem rodeios, ele apresenta uma instrução tão contraintuitiva que nos obriga a
questionar se ouvimos corretamente:
Não odeie o edomita, porque
ele é seu irmão. Não odeie o egípcio, porque você foi um estrangeiro em sua
terra. (Deuteronômio 23:8)
O que isso significa em seu
contexto bíblico? Os egípcios dos dias de Moisés escravizaram os israelitas, “amarguraram
suas vidas”, os sujeitaram a um regime implacável de trabalho duro e os
forçaram a comer o pão da aflição. Eles embarcaram em um programa de tentativa
de genocídio, com o faraó ordenando que seu povo jogasse “toda criança israelita
nascida no rio” (Êxodo 1:22).
Agora, quarenta anos depois,
Moisés fala como se nada disso tivesse acontecido, como se os israelitas
tivessem uma dívida de gratidão com os egípcios por sua hospitalidade. No
entanto, ele e o povo estavam onde estavam apenas porque estavam escapando da perseguição
egípcia. Ele também não queria que o povo se esquecesse disso. Ao contrário,
ele disse a eles para recitar a história do êxodo todos os anos, como ainda
fazemos na Páscoa, reencenando-a com ervas amargas e pão sem fermento para que
a memória fosse passada para todas as gerações futuras. Se você quer preservar
a liberdade, ele sugere, nunca se esqueça de como é perdê-la. No entanto, aqui,
nas margens do Jordão, dirigindo-se à próxima geração, ele diz ao povo: “Não
odeiem um egípcio”. O que está acontecendo neste versículo?
Para ser livre, você tem que
deixar de lado o ódio. É isso que Moisés está dizendo. Se eles
continuassem a odiar seus antigos opressores, Moisés teria tirado os israelitas
do Egito, mas não teria tirado o Egito dos israelitas. Seus pensamentos
os aprisionariam no passado, como se estivessem acorrentados por grilhões
invisíveis. As correntes da mente são as mais opressivas, pois limitam a
liberdade interior e impedem o avanço.
Você não pode criar uma sociedade
livre com base no ódio. Ressentimento, raiva, humilhação, um senso de
injustiça, o desejo de restaurar a honra infligindo ferimentos em seus antigos
perseguidores – essas são condições de uma profunda falta de liberdade. Você
deve viver com o passado, sugere Moisés, mas não no passado. Aqueles que são
mantidos cativos pela raiva contra seus antigos perseguidores ainda são
cativos. Aqueles que deixam seus antigos senhores definirem quem eles são, ainda não
alcançaram a liberdade.
Os livros mosaicos enfatizam
repetidamente o Êxodo e a importância de lembrar a escravidão no Egito. No
entanto, essa lembrança nunca é usada para justificar o ódio ou a vingança, mas
sim como base para construir uma sociedade justa e compassiva, oposta à
opressão egípcia. A mensagem implícita propõe uma legislação que limite a
prática da escravidão, estabelecendo períodos de descanso obrigatórios (Shabat)
e a libertação gradual dos escravizados (Shemitá). A ideia é humanizar as
relações sociais e reconhecer os direitos fundamentais de todos.
Sejamos generosos e justos em
nossas relações com o próximo. Compartilhar nossos recursos e oferecer apoio
aos necessitados são deveres de todos nós. A história da escravidão nos ensina
a importância da empatia e da justiça, princípios que moldaram a lei divina e
devem guiar nossas ações.
A ética bíblica propõe uma
dinâmica de inversão de papéis, baseada na memória, para superar o mal. Ao
recordar como é ser vítima, somos motivados a não repetir as mesmas
atrocidades, mas a construir um futuro mais justo e equitativo. Essa abordagem
da memória não nos aprisiona no passado, mas nos impulsiona a agir ativamente
para evitar novas injustiças.
Só assim podemos entender um
detalhe inexplicável na própria história do Êxodo. No primeiro encontro de
Moisés com Deus na sarça ardente, ele é encarregado da missão de levar o povo
para a liberdade. Deus acrescenta um estranho cavaleiro
Eu farei com que os egípcios
se mostrem favoráveis a
este povo, para que, quando vocês saírem, não saiam de mãos vazias. Toda mulher pedirá à sua vizinha e a qualquer mulher que viva em sua casa artigos de
prata e ouro e roupas, que vocês vestirão seus filhos e filhas.
Êxodo 3:21-22
O ponto é repetido duas vezes em
capítulos posteriores (11:2, 12:35). No entanto, ele vai totalmente contra a
essência da narrativa bíblica. De Gênesis (14:23) ao livro de Ester (9:10,
15,16), tomar saque, despojo ou pilhagem de inimigos é desaprovado. No caso de
idólatras, é estritamente proibido: sua propriedade é cherem, tabu, para
ser destruída, não possuída (Dt 7:25; 13:16).
A desobediência de Acã em acatar às
ordens divinas e tomar despojos das ruínas de Jericó trouxe sérias
consequências para o povo de Israel, como se vê no relato bíblico.
Outro ponto a considerar é o
destino do ouro obtido pelos israelitas. Sabemos que parte dele foi utilizada
na confecção do ídolo do Bezerro de Ouro. Diante disso, surge a questão: por
que motivo, em primeiro lugar, Elohim teria instruído os israelitas a pedir
esses objetos aos egípcios?
A própria Torá fornece a resposta
em uma lei posterior do Deuteronômio sobre a libertação de escravos:
Se um companheiro hebreu,
homem ou mulher, se vender a você e servir a você seis anos, no sétimo ano você
deve deixá-lo ir livre. Quando você o soltar, não o mande embora de mãos vazias.
Forneça-lhe liberalmente do seu rebanho, da sua eira e do seu lagar. Dê a ele
conforme o Senhor, seu Deus, o abençoou. Lembre-se de que você foi escravo no
Egito e o Senhor, seu Deus, o redimiu. É por isso que eu lhe dou esta ordem
hoje.
Deuteronômio 15:12-15
A experiência da escravidão exige
um "fecho" psicológico para ser superada. A verdadeira liberdade não
se resume à emancipação legal, mas à libertação dos traumas e ressentimentos.
Para alcançar essa cura, é fundamental que o ex-escravizado consiga se
desvencilhar dos sentimentos negativos em relação ao antigo senhor. A
insistência em presentes de despedida, como a Bíblia sugere, revela a
profundidade das feridas causadas pela escravidão, que precisam ser amenizadas
por atos de generosidade.
Ao instruir Moisés a pedir aos
israelitas que aceitassem presentes dos egípcios, Elohim estava, em essência,
dizendo: 'Sim, vocês sofreram sob o jugo da escravidão, mas esse capítulo está
prestes a se fechar. Lembrem-se do passado, mas sem rancor. A dor da escravidão
deve ser a lembrança central, não a raiva pelos opressores. Esse ato de receber
presentes representa um encerramento simbólico desse período sombrio.'
A busca por uma justiça absoluta
é uma ilusão, uma miragem que nunca poderá ser alcançada. Restaurar o que foi
perdido, seja a vida, a liberdade ou a dignidade, é uma tarefa impossível. O
passado, por mais doloroso que seja, é parte intrínseca de nossa história e não
pode ser simplesmente apagado. Ignorar ou suprimir o passado, no entanto, pode
ter consequências devastadoras, como o ressurgimento de antigas feridas e a
busca por uma vingança que, por mais justificável que possa parecer, raramente
traz a paz.
Portanto, o antigo senhor deve dar ao ex-escravo um presente, reconhecendo-o como um ser
humano livre que contribuiu, embora sem escolha, para seu bem-estar. Isso não é
um acerto de contas. É, ao contrário, uma forma mínima de restituição, do que
hoje é chamado de “justiça restaurativa”.
A liberdade genuína não coexiste
com o rancor. Um povo verdadeiramente livre perdoa, não se vinga. Para que
aqueles que sofreram perseguição possam construir uma sociedade justa e
igualitária, é necessário um processo de cura que envolve a superação das traumas
do passado, a transformação da dor em energia positiva e a construção de um
futuro baseado na esperança e na reconciliação.
Liberdade envolve o abandono do
ódio, porque ódio é a abdicação da liberdade. É a projeção de nossos conflitos
em uma força externa a quem podemos então culpar, mas apenas ao custo de negar
a responsabilidade. Essa foi a mensagem de Moisés para aqueles que estavam
prestes a entrar na terra prometida: que uma sociedade livre pode ser
construída apenas por pessoas que aceitam a responsabilidade da liberdade,
sujeitos que se recusam a se ver como objetos, pessoas que se definem pelo amor
a Elohim, não pelo ódio ao outro.
“Não odeiem um egípcio, porque
vocês foram estrangeiros em sua terra”, disse Moisés, querendo dizer: para
ser livre, você tem que abandonar o ódio.
Rabino Lord Jonathan Sacks
Texto revisado por Francisco Adriano
Germano
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