Há uma sequência fascinante de
mandamentos no grande "código de santidade" com o qual nossa
parashá começa, que esclarece a natureza não apenas da liderança no Judaísmo,
mas também o compromisso dos seguidores. Aqui está o mandamento em contexto:
Não odeie seu irmão no seu
coração. Repreenda o seu próximo com franqueza, para que você não leve
sobre si pecado por causa dele. Não busque vingança nem guarde rancor
contra ninguém do seu povo, mas ame o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o
Senhor.
Levítico 19:17-18
Há duas maneiras completamente
diferentes de entender as palavras em destaque. Maimônides as apresenta como
juridicamente vinculativas.1 Nahmânides as inclui em seu comentário
à Torá.2
A primeira interpretação foca nas
relações interpessoais. Nesse sentido, o texto bíblico adverte contra o
ressentimento silencioso em resposta a uma ofensa percebida. Em vez de
alimentar o ódio, guardar rancor ou buscar vingança, a Torá incentiva a comunicação
aberta e a confrontação construtiva. Ao expressar os sentimentos e
preocupações, busca-se a possibilidade de reconciliação e, mesmo na ausência
dela, o alívio emocional proveniente da expressão.
A segunda interpretação desloca o
foco para uma perspectiva impessoal, concernente à observação de uma conduta
inadequada, independentemente de o observador ser a vítima direta. O
mandamento, nesse caso, insta à ação em vez da passividade. Não basta apenas
julgar negativamente o comportamento alheio; é necessário intervir, oferecendo
repreensão de maneira gentil e construtiva, apontando o desvio em relação às
normas legais ou morais. O silêncio e a inação tornam o observador cúmplice da
falta, dada a responsabilidade coletiva inerente ao princípio judaico de kol
Yisrael arevin zeh ba-zeh ("Todos os judeus são fiadores uns pelos
outros").
O Talmude aprofunda a discussão
sobre o alcance da repreensão, conforme relatado em Bava Metzia 31a. A
repetição do verbo "repreender" no texto hebraico sugere a
obrigatoriedade da repreensão reiterada, não se limitando a uma ou duas vezes.
A lição talmúdica estende a aplicação do mandamento além da relação entre
mestre e discípulo, abrangendo todas as circunstâncias em que se observa uma
transgressão.
Esse ensinamento talmúdico
estabelece um princípio fundamental sobre o papel ativo dos seguidores. Embora
a tradição judaica enfatize o respeito aos mestres, o Talmude reconhece a
obrigação de protestar diante de uma ordem ou ação considerada errada, mesmo
quando emanada de uma figura de autoridade. A obediência a Elohim prevalece
sobre a obediência a líderes humanos, fundamentando a lógica da desobediência
civil diante de ordens imorais.3
Ademais, o judaísmo valoriza o
questionamento ativo e o debate construtivo.4 Pais e professores são
encorajados a cultivar nos aprendizes a capacidade de questionar e considerar
múltiplas perspectivas.5 Os textos canônicos judaicos refletem essa
diversidade de opiniões e interpretações, e o próprio processo de aprendizado é
concebido como um diálogo dinâmico e colaborativo na busca pela verdade.
A ideia de seguidores críticos
encontra sua expressão máxima nos Profetas, figuras que desempenharam o papel
de críticos sociais, denunciando injustiças e convocando até mesmo os poderosos
ao julgamento. Exemplos notáveis incluem Samuel confrontando Saul, Elias
repreendendo Acabe, Isaías advertindo Ezequias e Natã confrontando Davi sobre
seu pecado.6
Notavelmente, a tradição bíblica
revela que Elohim escolhe como discípulos aqueles que demonstram disposição
para questionar e desafiar, como Abraão, Moisés, Jeremias, Habacuque e Jó.
Em síntese, a liderança eficaz,
na perspectiva judaica, pressupõe a existência de seguidores ativos e críticos.
Todos nós, simplesmente por carregarmos o nome Israel, compartilhamos o
compromisso com a justiça, a compaixão e o bem comum, em um ambiente onde a
crítica construtiva é valorizada e incentivada.
A ausência de pensamento crítico
e a obediência cega podem conduzir a abusos de poder e tragédias evitáveis.
Casos como os acidentes aéreos da Korean Air e o desastre da Baía dos Porcos 7
ilustram os perigos do conformismo e da supressão da dissidência. Estudos sobre
o pensamento de grupo e a influência social, como os experimentos de Solomon
Asch, Stanley Milgram e Philip Zimbardo, corroboram essa preocupação.
A metáfora das
formigas-correição, apresentada por James Surowiecki em "A Sabedoria das
Multidões", ilustra vividamente os riscos da obediência irrefletida. 8
Ele conta a história de como um naturalista americano, William Beebe, se
deparou com uma visão estranha na selva da Guiana. Um grupo de
formigas-correição se movia em um enorme círculo. As formigas giravam sem parar
no mesmo círculo por dois dias, até que a maioria delas morreu. A razão é que,
quando um grupo de formigas-correição é separado de sua colônia, elas obedecem
a uma regra simples: seguir a formiga à sua frente. O problema é que se a
formiga na sua frente estiver perdida, você também estará.
A sobrevivência e o bem-estar de
um grupo dependem da presença de vozes dissidentes que desafiem o pensamento
convencional e questionem a direção estabelecida.
Yeshua (Jesus) e Seus
Discípulos: Um Modelo de Liderança e Seguimento
A relação entre Yeshua e seus
discípulos oferece um exemplo rico e complexo de liderança e seguimento, que
ecoa alguns dos princípios delineados na tradição judaica e, ao mesmo tempo,
apresenta nuances singulares.
Yeshua, como mestre e líder,
estabeleceu um vínculo profundo com seus discípulos, caracterizado por amor,
serviço e ensino. Ele os chamou para segui-lo, não com uma obediência cega, mas
com um compromisso transformador. [Mateus 4:19] Yeshua os instruiu a amar uns
aos outros como ele os amou [João 13:34], demonstrando uma liderança baseada no
exemplo e no sacrifício.
Embora Yeshua fosse a figura
central de autoridade, ele encorajava o diálogo e as perguntas. Os discípulos
frequentemente questionavam seus ensinamentos e buscavam esclarecimentos.
[Mateus 13:36, Mateus 15:15, Mateus 16:22] Yeshua respondia com paciência,
usando parábolas e explicações detalhadas para aprofundar sua compreensão. Ele
os preparava para continuar sua missão, capacitando-os a pensar criticamente e
a aplicar seus ensinamentos em novas situações.
Em alguns momentos, Yeshua
repreendia seus discípulos por sua falta de fé, incompreensão ou ambição.
[Mateus 16:23, Marcos 8:33, Lucas 9:55] No entanto, essas repreensões não eram
motivadas por autoritarismo, mas por um desejo de corrigir e instruir. Yeshua
buscava moldá-los à imagem do verdadeiro discípulo, alguém que prioriza o
serviço, a humildade e o amor.
O Ensino de Paulo:
Continuidade e Expansão do Modelo
O apóstolo Paulo, embora não
tenha sido um dos doze discípulos originais, desempenhou um papel fundamental
na expansão das Boas Novas de Yeshua. Seus ensinamentos sobre liderança e
seguimento complementam e expandem os princípios observados na relação entre
Yeshua e seus discípulos.
Paulo enfatiza a importância da
submissão e da obediência às autoridades, tanto seculares quanto espirituais.
[Romanos 13:1-7, Hebreus 13:17] Ele reconhece a necessidade de ordem e
estrutura dentro da comunidade dos crentes. No entanto, essa submissão não é
incondicional. Paulo também os exorta a discernir e a não se conformar com os
padrões deste mundo, mas a serem transformados pela renovação de suas mentes.
[Romanos 12:2]
Paulo encoraja o exame crítico
das Escrituras e o uso do discernimento espiritual. Ele elogia os bereanos por
sua nobreza em examinar as Escrituras para verificar se o que ele dizia era
verdade. [Atos 17:11] Paulo também adverte contra seguir cegamente os líderes e
enfatiza a importância de provar todas as coisas e reter o que é bom. [1
Tessalonicenses 5:21]
Em suas cartas, Paulo aborda a
correção e a repreensão dentro da comunidade. Ele instrui Timóteo a repreender
com toda a autoridade, mas também com paciência e ensino. [2 Timóteo 4:2] Paulo
enfatiza a importância de restaurar os que pecam com mansidão e humildade.
[Gálatas 6:1] Ele adverte contra a fofoca e a difamação, incentivando a
comunicação edificante e o amor fraternal. [Efésios 4:29, Colossenses 4:6]
Em resumo, tanto a relação entre
Yeshua e seus discípulos quanto os ensinamentos de Paulo destacam a importância
de uma dinâmica saudável entre líderes e seguidores. Essa dinâmica é
caracterizada por amor, respeito, ensino, questionamento construtivo e discernimento.
A liderança eficaz não busca a
obediência cega, mas inspira um compromisso transformador e capacita os
seguidores a pensarem criticamente e a contribuir para o bem comum.
Texto base publicado
pelo Rabino Lord Jonathan Sacks
Revisado e adaptado por
Francisco Adriano Germano
__________________________
Notas
[1] Maimônides, Hilchot Deot 6:6-7.
[2] Nahmanides, Comentário sobre Levítico 19:17.
[3]
Kiddushin 42b.
[4]
Kiddushin 30b
[5] Ta'anit
7a.
[6] 2 Samuel 12:13.
[7] Veja Cass Sunstein, por que as sociedades precisam da
dissidência, Harvard University Press, 2003, 2-3.
[8] James Surowiecki, A sabedoria das multidões, Little,
Brown, 2004, 40-41.

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