Uma das mais sublimes e
transformadoras contribuições das Escrituras à civilização ocidental é a visão
de que a história tem direção, propósito e redenção — e que pode
ser resumida em uma palavra, tikvá (esperança). Nem todas as culturas
dão origem à esperança. Pelo contrário: no cerne de muitas culturas está a
ideia de que o tempo é cíclico. O que foi, será. A história é um conjunto de
recorrências eternas. Nada nunca muda de fato. A vida é trágica. Uma das
expressões clássicas disso está contida no livro de Eclesiastes: “o que foi,
isso será” (Eclesiastes/Kohelet 1:9)
Eclesiastes, porém, é uma voz
dissidente dentro do Tanach. Em grande parte, a Bíblia expressa uma visão bem
diferente: a de que pode haver mudança nos assuntos da humanidade. Somos
convocados para a longa jornada cujo fim é a redenção e a era messiânica. É a
rejeição da tragédia em nome da esperança.
O sociólogo Peter Berger
poeticamente descreve a esperança como um "sinal de
transcendência", sugerindo que ela representa a irrupção de algo que
está além da nossa experiência humana imediata. Curiosamente, a esperança não
se sustenta na lógica fria dos fatos passados ou presentes; ela não é uma
conclusão inevitável. Ao longo da história, diversas culturas, da Grécia Antiga
aos nossos dias, consideraram a esperança uma mera ilusão, um devaneio
infantil, propondo que a maturidade reside em aceitar a natureza trágica da
nossa existência e cultivar a aceitação estoica1. No entanto, as
Escrituras apresentam uma perspectiva oposta e vibrante: o “universo”
não é indiferente aos nossos anseios, nem insensível às nossas súplicas. Lutar
por um mundo melhor, recusando-se a aceitar o sofrimento e a injustiça como
inevitáveis, não é um erro, mas sim um chamado à ação.
Ou seja, essa esperança não é
meramente emocional ou utópica; ela é firmada em emunah (fé) e em uma
aliança divina que transcende os erros humanos. É a certeza de que YHWH não
apenas criou o universo, mas permanece envolvido com ele, conduzindo-o para um
desfecho de justiça, shalom (paz) e reconciliação.
A Esperança nas Escrituras
O Tanach apresenta de forma
notável a tensão entre o julgamento e a promessa, entre o sofrimento e a
fidelidade divina. Em Vayikrá (Levítico) 26, lemos uma das mais severas
advertências à nação de Israel — a tokhachah — descrevendo exílio,
perseguição e destruição como consequências da desobediência. No entanto, mesmo
no ápice da condenação, a esperança permanece viva:
Mesmo assim,
quando estiverem na terra dos seus inimigos, não os rejeitarei completamente,
nem os destruirei, invalidando a Minha aliança com eles, porque Eu sou YHWH,
seu Elohim. (Vayikrá / Levítico 26:44)
Israel pode sofrer, mas nunca
perecerá. Pode experimentar o exílio, mas um dia retornará. Pode sofrer a mais
terrível perseguição, mas nunca terá motivos para se desesperar. A colocação
desta profecia no ápice das maldições é uma das mais fatídicas de todas as
afirmações bíblicas.
Nenhum destino é tão
sombrio a ponto de assassinar a própria esperança. Nenhuma derrota é final,
nenhum exílio é interminável, nenhuma tragédia é a última palavra da história.
Essa promessa é reiterada nas
visões proféticas, como no impressionante relato de Yechezkel (Ezequiel)
sobre o vale de ossos secos:
Filho do homem,
estes ossos são toda a casa de Israel. Eles dizem: ‘Nossos ossos estão secos, e
nossa esperança pereceu — avdah tikvatenu. Assim diz Adonai: ‘Eis que abrirei
as vossas sepulturas e vos farei subir delas, ó povo Meu, e vos trarei à terra
de Israel’. (Yechezkel / Ezequiel 37:11–12)
Este texto inspirou Naftali
Herz Imber ao compor as palavras de Hatikvá, o hino nacional de
Israel: “od lo avdah tikvatenu” — “nossa esperança ainda não está perdida”.
Aqui reside o núcleo da nossa espiritualidade: a esperança é mais
resistente que o exílio, mais poderosa que a tragédia, mais duradoura que
qualquer perseguição.
De onde vem a esperança? Berger a
vê como parte constitutiva da nossa humanidade:
A existência humana está
sempre orientada para o futuro. O homem existe expandindo constantemente seu
ser em direção ao futuro, tanto em sua consciência quanto em sua atividade...
Uma dimensão essencial dessa "futuridade" do homem é a esperança. É
por meio da esperança que os homens superam as dificuldades de qualquer
situação presente. E é por meio da esperança que os homens encontram sentido
diante do sofrimento extremo.
Peter Berger, Um Rumor de
Anjos, pp. 68-69
Somente a esperança nos capacita
a correr riscos, a nos envolver em projetos de longo prazo, a casar e ter
filhos, e a nos recusar a capitular diante do desespero:
Parece haver uma esperança que
se recusa a morrer no âmago da nossa humanitas. Embora a razão empírica indique
que essa esperança é uma ilusão, há algo em nós que, por mais envergonhado que
seja numa era de racionalidade triunfante, continua a dizer "não!" e
até mesmo às explicações sempre tão plausíveis da razão empírica. Num mundo
onde o homem está cercado pela morte por todos os lados, ele continua a ser um
ser que diz "não!" à morte — e, por meio desse "não!", é
levado à fé em outro mundo, cuja realidade validaria sua esperança como algo
diferente de ilusão.
Um Rumor de Anjos, p. 72
Discordando da visão de Berger,
entendo que a esperança não é um sentimento comum a todos. Ela floresce no
nosso mundo ocidental a partir de um conjunto particular de crenças: a
existência de Elohim que se importa conosco, que estabeleceu laços, alianças,
com a humanidade e, de forma especial, com um povo escolhido para exemplificar
a fé. Essa relação especial com Ele influencia a maneira como interpretamos a
história.
YHWH deu sua palavra e jamais a
quebrará, por mais que possamos quebrar nossa parte da promessa. Sem essas
crenças, não teríamos nenhum motivo para ter esperança.
A Esperança em Yeshua
HaMashiach
Com o advento de Yeshua de
Natzrat (Jesus de Nazaré), a lógica da esperança se aprofunda e se
expande, alcançando dimensões universais. Em Sua vida, morte e ressurreição,
Yeshua encarna e confirma as promessas proféticas. Ele é o Mashiach ben
Yosef (o Messias sofredor), que leva sobre Si o peso do pecado e da dor
humana, e é também o Mashiach ben David, que retornará como Rei
para restaurar todas as coisas (Atos 3:21).
A Brit Chadashá (Nova
Aliança) reafirma o fundamento da esperança, revelando seu cumprimento
em Yeshua:
Bendito seja o Elohim
e Pai de nosso Senhor Yeshua HaMashiach! Conforme Sua grande misericórdia, Ele
nos regenerou para uma viva esperança mediante a ressurreição de Yeshua
HaMashiach dentre os mortos. (1 Kefa / 1 Pedro 1:3)
A esperança messiânica não é
ilusão, mas certeza — ancorada na fidelidade de Elohim e confirmada no triunfo
do Mashiach sobre a morte. Os shlichim (apóstolos) ensinam que essa
esperança deve moldar nossa conduta:
E todo aquele que
nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, assim como Ele é puro. (1
Yochanan / 1 João 3:3)
E Rav Shaul (Paulo), em sua carta
aos romanos, declara com convicção:
Ora, o Elohim da
esperança vos encha de todo o simchá (alegria) e shalom na fé, para que
abundeis em esperança pelo poder do Ruach HaKodesh (Espírito Santo). (Romanos 15:13)
A Tikvá que transforma
A esperança bíblica não é fuga da
realidade — é a força para transformá-la. Ela diz "não" à
morte, ao desespero e à resignação, e diz "sim" à vida, à restauração
e à eternidade. Ela nos convida a olhar para o céu, sem tirar os pés da
terra. E sobretudo, ela nos lembra:
Porque eu bem sei
os planos que tenho para vós, diz YHWH — planos de paz e não de mal, para vos
dar um futuro e uma esperança. (Yirmiyahu / Jeremias 29:11)
A fé não nos cega para a aparente
aleatoriedade das circunstâncias, a crueldade da fortuna, as aparentes
injustiças do destino. Ninguém, lendo Levítico 26, pode ser otimista. No
entanto, ninguém sensível à sua mensagem pode abandonar a esperança.
OD LO AVDAH TIKVATENU
Nossa esperança ainda
não está perdida!
Francisco Adriano Germano
Texto baseado no artigo: https://rabbisacks.org/covenant-conversation/bechukotai/the-logic-of-hope/
Notas:
1 - O estoicismo, escola filosófica helenística fundada por
Zenão de Cítio no início do século III a.C., preconiza uma ética baseada na
razão e na virtude como caminhos para a eudaimonia (felicidade ou florescimento
humano). Os estoicos defendiam a aceitação do que não podemos controlar,
distinguindo entre o que está em nosso poder (nossas opiniões, desejos,
impulsos e ações) e o que não está (saúde, riqueza, reputação). A serenidade
(ataraxia) é alcançada pela compreensão da ordem racional do universo (Logos) e
pela vivência em harmonia com a natureza, cultivando a autossuficiência e a
indiferença (em sentido de ausência de perturbação) em relação aos eventos
externos. Principais expoentes incluem Epiteto, Sêneca e Marco Aurélio.
Comentários
Postar um comentário