O que o episódio de Korach pode
nos ensinar hoje?
O episódio da rebelião de Korach,
descrito no livro de Números (Bamidbar), é um dos relatos mais dramáticos da
Torá. Mais do que uma simples disputa política, a história revela questões
profundas sobre liderança, santidade, obediência e autoridade espiritual.
O rabino Jonathan Sacks (z”l), em
seu comentário “A Cloak Entirely Blue” (Um Manto Inteiramente Azul),
oferece uma leitura rica e atemporal dessa passagem. Vamos explorar o
significado desse Midrash e como ele dialoga com os ensinamentos de
Yeshua e os escritos apostólicos.
O que é Midrash?
Antes de tudo, é importante
entender o que é Midrash.
Trata-se de um método clássico de
interpretação dos textos bíblicos judaicos.
O Midrash vai além da leitura
literal da Torá (o peshuto shel mikra, o sentido simples). Ele busca
preencher lacunas, explorar contradições e revelar lições morais e espirituais
escondidas por trás das palavras.
Existem dois tipos principais:
- Midrash Halachá –
interpretação com foco nas leis (Halachá).
- Midrash Aggadá – explora
histórias, personagens e mensagens éticas.
O Manto Azul de Korach: Um
Desafio à Liderança
O Midrash apresentado por Rashi
sobre Korach é fascinante.
Segundo a tradição, Korach reuniu
seus seguidores, todos vestidos com mantos inteiramente de lã azul
(techelet), uma cor sagrada que representa o céu e a presença de Elohim.
Então, ele fez uma pergunta
provocativa a Moisés:
“Se um manto é todo feito de
techelet, ainda precisa das franjas (tzitzit) com um fio azul?”
Moisés respondeu que sim.
A resposta gerou risos e
zombarias. Como poderia um único fio azul “santificar” uma roupa, se um
manto inteiro da mesma cor não seria considerado suficiente?
Korach sabia que, ao fazer a
pergunta, estava armando uma armadilha retórica. Quando Moisés desse a resposta
tecnicamente correta – afirmando que mesmo um manto totalmente azul ainda
precisaria das franjas com o fio azul –, Korach poderia usar isso para ridicularizá-lo
diante do povo.
Ou seja, sua intenção era clara:
fazer com que Moisés parecesse absurdo, como alguém que inventava regras
ilógicas e desnecessárias. Korach então sugeriria que isso era uma prova de que
todas as demais leis que Moisés afirmava ter recebido de Elohim não passavam de
invenções humanas. Afinal, segundo o argumento de Korach, YHWH jamais ordenaria
algo tão aparentemente ridículo.
Tzitzit, Techelet e o Valor da
Obediência
Aqui vale uma pausa para explicar
dois termos importantes:
- Tzitzit: São as franjas
nas quatro extremidades das vestes, ordenadas por Elohim em Números 15:38-40,
com a função de lembrar os mandamentos divinos.
- Techelet: Um tom
específico de azul, usado nas franjas (tzitzit), associado à realeza, ao céu e
à santidade.
A lógica de Korach era simples e,
ao mesmo tempo, enganosa: se o objetivo das tzitzit é lembrar o céu, por que
um manto inteiro azul não seria ainda melhor?
Há uma tentação constante na vida
dos crentes de pensar que não precisamos da lei – da halachá (o caminho legal e
prático que rege a vida diária) – para alcançar nossos ideais espirituais.
Existem mandamentos cujas razões são explicitamente explicadas, e o tzitzit é
um deles. Não se trata de um chok – um “estatuto” cujo propósito é
oculto ou não explicado. Pelo contrário, é um dos edot – “testemunhos”,
cujo objetivo é nos lembrar de certas verdades, sejam elas históricas ou
espirituais.
No caso de qualquer mandamento
com um propósito definido, sempre surge a tentação de dizer que o que realmente
importa é o fim, não o meio; o propósito, mas não o método específico de
alcançá-lo. Este foi precisamente o argumento de Korach: havia outras maneiras
de lembrar o céu além de amarrar uma simples franja azul (o techelet) nas
extremidades das vestes. Uma alternativa mais impressionante seria, por
exemplo, confeccionar uma roupa inteiramente azul – algo, sem dúvida, muito
mais visível e chamativo.
Porém, a resposta de Elohim,
confirmada por Moisés, foi clara: não se trata apenas da cor ou da
quantidade. Trata-se da obediência ao método estabelecido por YHWH.
O Verdadeiro Problema de
Korach: Orgulho Disfarçado de Santidade
Korach apresentava seu discurso
como uma defesa da igualdade espiritual:
“Toda a congregação é santa!”
(Números 16:3)
No entanto, a verdadeira intenção
dele era minar a autoridade de Moisés e Arão.
Como bem observa o Rabino Sacks,
reconhecer que todos são santos não elimina a necessidade de liderança. Até
mesmo uma orquestra composta apenas de músicos excelentes precisa de um
maestro.
O argumento de Korach pode
parecer lógico, mas está longe de ser verdadeiramente racional. O que ele
ignorou — e que é central — é que a essência de um mandamento está no meio,
e não apenas no fim. É justamente ao fazer as coisas da maneira que Elohim
ordena que passamos por um processo de transformação pessoal.
Assim como um aprendiz
impaciente, que se recusa a seguir as orientações de seu mestre, jamais
amadurecerá ou alcançará maestria, também aquele que despreza os detalhes das
instruções divinas permanecerá espiritualmente imaturo. A aprendizagem, no
sentido espiritual, exige disciplina e submissão às orientações de um
Especialista Supremo: o próprio Criador.
Esse é o verdadeiro significado de
mitzvá – um mandamento divino. Cada mitzvá é uma oportunidade de aprendizado
com YHWH.
Ao apresentar essa reflexão, o
Midrash nos ensina algo profundamente revelador, não apenas sobre a natureza de
um mandamento, mas também sobre o conceito de liderança espiritual.
Korach jamais poderia ser um
verdadeiro líder, porque era incapaz de ser um seguidor. Ele não compreendia o
que significava obedecer, e alguém que não sabe obedecer, jamais será capaz de
inspirar os outros a obedecer.
Além disso, ao minar a autoridade
de Moisés e Arão, Korach não queria abolir a liderança. Ele queria tomar
o lugar dela.
Um Midrash com Contexto
Histórico
O Midrash sobre o manto azul não
surgiu apenas para comentar a Torá. Ele também é uma resposta à realidade dos
rabinos após a destruição do Segundo Templo.
Naquele período, surgiram seitas
e movimentos que questionavam a autoridade da Tora. Diziam que Moisés
inventara os mandamentos.
O episódio de Korach,
interpretado à luz desses desafios, é um aviso eterno:
Desacreditar a liderança
espiritual legítima pode colocar toda a comunidade em risco.
A Relevância para os
Discípulos de Yeshua
Quando olhamos para os
ensinamentos de Yeshua (Jesus), o paralelo é imediato.
Yeshua reforçou a importância da obediência
aos mandamentos de Elohim, tanto na letra quanto no espírito (Mateus
5:17-20).
Ele também criticou severamente
aqueles que usavam a religião como palco para vaidade e manipulação
(Mateus 23:1-12).
Assim como o Midrash denuncia o
populismo espiritual de Korach, Yeshua alertou contra líderes que buscam os
primeiros lugares nas sinagogas e os títulos honoríficos, mas não vivem
com humildade.
Além disso, a carta de Paulo aos
Efésios afirma:
E Ele mesmo concedeu uns para
apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para
pastores e mestres, com o fim de preparar os santos para a obra do ministério. Efésios
4:11-12
Ou seja, mesmo sendo todos
chamados à santidade, a liderança espiritual é um dom divino, necessário
para o amadurecimento e unidade do povo de Elohim.
Conclusão: Obediência,
Liderança e Humildade
A história de Korach nos lembra
que:
- Obediência aos detalhes da
vontade de Elohim transforma o nosso caráter.
- Liderança legítima é
necessária, mesmo entre os espiritualmente maduros.
- Desafiar a liderança com
motivações egoístas só traz divisão e ruína.
Korach, apesar de seus erros,
possuía uma virtude que merece ser reconhecida: ele enxergou que o povo de
Israel deveria aspirar a se tornar um "manto inteiramente azul" –
um símbolo de total dedicação e santidade.
Ele pagou um preço alto por seus
pecados de orgulho e rebelião. No entanto, sua história não termina de forma
totalmente trágica: seus filhos sobreviveram. Muitos séculos depois,
seus descendentes foram aqueles que cantaram os Salmos no Templo de
Jerusalém – um legado tão forte que uma coleção inteira de Salmos
carrega o título “Salmos dos Filhos de Korach” (como os Salmos 42 a 49, entre
outros).
Se a ambição desmedida não o
tivesse corrompido, talvez Korach pudesse ter se tornado um líder legítimo.
Pois ele, de fato, enxergou uma verdade profunda e comovente: um povo
verdadeiramente dedicado a YHWH pode, um dia, tornar-se como um manto, no qual
todos os fios são azul-real – totalmente conectados à vontade divina.
Que essa lição nos inspire a
buscar a humildade, a obediência e o discernimento necessários para distinguir
entre uma visão nobre e a ambição egoísta.
Por Francisco Adriano Germano

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