A Parashá Devarim, que dá
título ao quinto livro da Torá - Deuteronômio -, inicia com as famosas
palavras: “Estas são as palavras (Devarim) que Moshê (Moisés) falou a todo
Israel…” (Deuteronômio 1:1). Segundo o Rabino Jonathan Sacks, o uso de “premissas
ou palavras” como nome não é casual. Ele destaca uma conexão poderosa:
aquele que disse “não sou homem de palavras” torna-se o porta-voz mais
eloquente de Elohim, cuja fala representa a presença divina atuando através da
humildade de Moshê [1].
Além disso, o livro de Devarim
tem estrutura literária semelhante a um documento de pacto: apresenta
premissa, narrativa histórica e renovação de compromisso entre YHWH e o povo à
beira da Terra Prometida [2].
Jornada, Lembrança e
Repreensão Amorosa
Nesta parashá, Moshê relembra
episódios-chave da travessia pelo deserto - desde o envio dos espias até as
conquistas sobre Moabe e Amom - mediados por palavras de repreensão e incentivo
a um novo povo prestes a entrar em Canaã. Ele não aponta diretamente os
pecados, mas refere-se a locais (Paran, Tofel, Chatzeirot etc.) como remissão
simbólica das falhas cometidas, em tom de respeito à dignidade do povo [3].
Essa doutrina de repreensão dos
anciãos é amparada pelo judaísmo tradicional, que enxerga na voz sincera e
compassiva um caminho para tanto correção quanto dignificação interior.
No ensino de Yeshua HaMashiach,
a vida em fé é apresentada como uma jornada dinâmica. Ele convida seus
discípulos a carregarem a cruz e seguirem-no (Lucas 9:23) - um processo
contínuo de renúncia e compromisso. Assim como Moshê revisitou os destinos do
povo, Yeshua nos recorda que cada passo deve ser dado à luz do Reino vindouro e
de nossa identidade em Messias.
Os apóstolos retomam essa
linguagem da peregrinação espiritual. Paulo afirma:
Esquecendo-me das
coisas que ficaram para trás... prossigo para o alvo... (Filipenses 3:13‑14)
Pedro chama os fiéis de peregrinos
e forasteiros (1 Pedro 2:11), lembrando que a presença do povo de Elohim
não reside em estruturas fixas, mas em movimento constante na direção de Canaã
espiritual.
A Responsabilidade na
Liderança e na Jornada Coletiva
No início de Devarim, Moshê
relembra também a escolha de líderes e confronta o medo e a hesitação do povo
frente ao desconhecido. Esse exercício de responsabilidade coletiva encontra
eco nos ensinamentos dos apóstolos sobre liderança servil e coragem para a
missão (como exemplificado nos atos de Paulo e de Tiago).
Essa estrutura não apenas
organiza a sociedade, mas ensina que autoridade deve ser exercida com
responsabilidade, humildade e compromisso com a verdade.
A liderança, nesse modelo, não é
poder concentrado, mas serviço orientado pela justiça e pela memória - temas
que ressoam também nos ensinamentos de Yeshua:
Quem quiser
tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva.
(Marcos 10:43)
E nos conselhos de Yaakov
(Tiago):
Meus irmãos, não
façais acepção de pessoas... se realmente cumprirdes a lei real segundo a
Escritura: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
(Tiago 2:1, 8)
Para o Rabino Sacks, Devarim não
é apenas um discurso final, mas a fundação de uma sociedade baseada em palavras
vivas e contraídas em aliança. A mensagem é clara: o pacto só se mantém
enquanto a palavra - interiorizada e viva - não se apaga [4].
Harmonia entre Tradição e
Revelação
A tradição judaica valoriza
fortemente a justiça, a equidade e a ética ao aplicar as palavras de Moshê. Em
Deuteronômio 1:17, por exemplo, surge o princípio de imparcialidade no
julgamento, pregado por líderes como Rabi Eliezer e Rabi Judah na literatura
rabínica [5].
Yeshua e os apóstolos afirmam
princípios similares: justiça, amor ao próximo, integridade comunitária e
centralidade da Palavra como força de renovação (Mateus 22:37; Tiago 2:8‑9).
Além disso, estabelece um elo
profundo entre memória, instrução e compromisso comunitário. Moshê, ao
rememorar os eventos do deserto, não o faz como mero contador de histórias, mas
como mestre e profeta que chama Israel à responsabilidade espiritual por meio
das palavras da aliança.
Yeshua, ao iniciar seu
ministério, não rejeita essa tradição - pelo contrário, Ele a honra, aprofunda
e revela seu pleno significado:
Não penseis que
vim abolir a Torá ou os Profetas; não vim para abolir, mas para cumprir. (Mateus
5:17)
A palavra grega usada para
“cumprir” (plērōsai) pode ser entendida como plenificar, levar à sua intenção
mais elevada. Isso significa que Yeshua não contradiz a Torá, mas a revela em
sua essência: uma Torá viva, encarnada, que aponta para o coração
transformado.
Por exemplo, quando Yeshua ensina
sobre o julgamento justo, o amor ao próximo e a integridade nas palavras
(Mateus capítulos 5–7), Ele está dialogando diretamente com temas centrais de
Devarim — como a justiça imparcial (Devarim 1:17), a compaixão comunitária e a
obediência que nasce da escuta consciente da voz de Elohim.
Além disso, os ensinamentos de
Yeshua frequentemente seguem a estrutura midráshica: Ele cita a Escritura,
interpreta à luz da tradição e aplica com autoridade. Ao fazê-lo, Ele mostra
como a revelação divina não rompe com o passado, mas o consuma e o
projeta para o Reino.
O próprio modo como os apóstolos
ensinam após a ressurreição - especialmente em Atos, nas epístolas e nas cartas
de Yaakov (Tiago) - demonstra essa mesma harmonia entre tradição e revelação.
Eles citam a Torá e os Profetas como base da fé, iluminados agora pela
revelação de Yeshua como o Mashiach prometido.
Assim, a Parashá Devarim, que
abre o último livro da Torá com um chamado à escuta das palavras de aliança,
encontra seu eco no ensino do Messias, que conclama seus discípulos:
Quem tem ouvidos
para ouvir, ouça. (Marcos 4:9)
Essa escuta não é apenas
auditiva, mas obediente. E é nela que a tradição encontra sua renovação - não
na ruptura, mas na revelação que redime, purifica e conduz ao Reino de Elohim.
Conclusão: Uma Palavra Viva
Entre Tradição e Revelação
A Parashá Devarim inaugura o
Sefer Devarim com um chamado profundo à escuta: não apenas ouvir, mas
compreender, internalizar e responder às palavras da aliança. Moshê, às
vésperas de sua partida, não repete a Torá apenas por zelo pedagógico, mas
porque sabe que a fidelidade do povo depende da memória e da renovação
constante do compromisso com Elohim.
Esse mesmo princípio está
presente no coração do ensino de Yeshua HaMashiach, que nos convida a vivermos
não apenas por tradições herdadas, mas pela palavra viva - aquela que
transforma o interior, dá sentido à Lei e projeta o crente para o Reino
vindouro.
Em vez de abolir a Torá,
Yeshua a leva à sua plena realização, revelando a harmonia entre o que foi
entregue no Sinai e o que foi revelado em sua vida, morte e ressurreição.
Os apóstolos, por sua vez, não
romperam com essa tradição, mas a continuaram com discernimento espiritual.
Suas cartas são repletas de ecos da Torá e dos Profetas, interpretados à luz da
revelação messiânica, reafirmando que a caminhada com YHWH é, ao mesmo tempo,
um retorno à Palavra e uma marcha em direção ao Reino.
Assim como Moshê falou ao povo à
beira da Terra Prometida, as Escrituras falam hoje a nós, que caminhamos como
forasteiros neste mundo, aguardando a plena herança que nos está prometida. Que
possamos ser encontrados como ouvintes atentos e praticantes fiéis das palavras
do pacto - palavras que não envelhecem, mas se renovam a cada geração.
“Estas são as
palavras…” - que também sejam as nossas, com temor, esperança e fidelidade.
Francisco Adriano Germano
Notas
[1]:
https://rabbisacks.org/covenant-conversation/devarim/words/?utm_source=chatgpt.com
"Words | Devarim | Covenant & Conversation"
[2]:
https://rabbisacks.org/covenant-conversation/devarim/?utm_source=chatgpt.com
"Parshat Devarim | Covenant & Conversation | The Rabbi Sacks ..."
[3]:
https://www.chabad.org/library/bible_cdo/aid/9965/jewish/Chapter-1.htm?utm_source=chatgpt.com
"Deuteronomy - Chapter 1 (Parshah Devarim) - Tanakh Online - Torah"
[4]:
https://breslov.org/dvar-torah-for-parshat-devarim/?utm_source=chatgpt.com
"Dvar Torah for Parshat Devarim - Breslov.org"
[5]:
https://en.wikipedia.org/wiki/Devarim_%28parashah%29?utm_source=chatgpt.com
"Devarim (parashah)"
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