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A GRANDE COMISSÃO: UMA PERSPECTIVA JUDAICA



Mateus 28:19 é um dos versículos mais debatidos e, talvez, mal compreendidos do Novo Testamento. Para muitos, a "Grande Comissão" é vista como a base do proselitismo cristão e, em particular, da doutrina trinitária. No entanto, ao examinarmos esta passagem com os olhos do primeiro século, imersos no contexto judaico de Yeshua e de Seus talmidim (discípulos), a mensagem se revela em uma luz totalmente diferente, mais rica e surpreendente.

 

O objetivo desse artigo é desmistificar a famosa ordem de Yeshua, para oferecer uma correta interpretação da sua famosa frase:

 

Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado (Mateus 28:19-20)

 

Para começar, é fundamental entender que Yeshua não era um mestre grego ou romano, mas um rabino galileu, e Seus discípulos eram judeus. Sua missão, portanto, deve ser compreendida à luz do Tanach (o “Antigo Testamento”) e da tradição judaica.

 

A Delegação do Sh'liach

 

A primeira parte, "Ide, portanto, fazei discípulos...", ecoa o conceito judaico de Sh'lichut (missão ou delegação). Um sh'liach é um emissário, uma pessoa que é enviada com a plena autoridade de quem a enviou. Yeshua, como o Messias (Mashiach), o enviado de Elohim, estava agora delegando Sua própria autoridade aos Seus talmidim. Ele lhes deu a missão de estender o Reino dos Céus para além das fronteiras de Israel, um conceito que já existia na profecia judaica de que a Torá um dia sairia de Sião e a luz de YHWH seria para todas as nações (Isaías 2:3, Miqueias 4:2).

 

O objetivo não era criar uma religião, mas convidar as nações (goyim) a se juntarem ao povo de YHWH e ao seu Messias, tornando-se talmidim de Yeshua, assim como os discípulos de João Batista ou de outros rabinos da época. Ser talmid de Yeshua significava viver de acordo com Sua interpretação da Torá, que era mais profunda e espiritual, focada no coração e na intenção (kavaná).

 

O Batismo: Uma Tevilah de Novo Começo

 

A segunda parte, "batizando-os...", nos leva ao coração do rito. A palavra "batismo" é uma transliteração do grego baptizo, que significa "imergir" ou "mergulhar". Seu equivalente em hebraico é tevilah. Este não era um ritual inventado por João Batista ou Yeshua, mas uma prática milenar no judaísmo para a purificação ritual. No entanto, a tevilah também tinha um papel crucial na conversão de gentios ao judaísmo, tornando-os prosélitos.

 

Quando um gentio se convertia, ele se submetia a uma tevilah em um mikveh (banho ritual) na presença de testemunhas. Ele entrava na água como um gentio, morria para sua antiga vida, e ressurgia como um novo ser, um "recém-nascido" (katan shenolad). Ele agora fazia parte do povo de Israel.

 

O batismo de Yeshua e de Seus discípulos, portanto, não era algo estranho aos judeus. Era o reconhecimento do arrependimento e da entrada em uma nova vida de obediência a Elohim, mas agora focada no Messias. O apóstolo Paulo, por exemplo, não hesita em conectar o batismo com a morte para a velha vida e a ressurreição para uma nova vida em Yeshua, como uma encenação espiritual de nosso renascimento.

 

A Singularidade do Nome

 

Aqui chegamos à parte mais complexa: "...em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo." A leitura trinitária clássica entende isso como a ordenança de batizar em nome de três pessoas divinas. No entanto, o judaísmo é, e sempre foi, rigidamente monoteísta. A declaração de fé mais central do judaísmo é o Shema: "Ouve, Israel: YHWH, nosso Elohim, YHWH é um (Echad)!" (Deuteronômio 6:4).

 

O que Yeshua queria dizer? No hebraico e no aramaico, a expressão "em nome de" (b'shem) não se refere a uma fórmula mágica, mas sim à autoridade ou ao poder de uma pessoa. Quando os apóstolos batizavam, o faziam "em nome de Yeshua" (Atos 2:38; 8:16; 10:48; 19:5). Isso significa que eles batizavam com a autoridade de Yeshua, o Messias.

 

Em João 17:11, Yeshua ora ao Pai: "Guarda-os no teu nome, que me deste, para que eles sejam um, assim como nós somos um." O nome de Yeshua não é um nome diferente do Pai, mas o próprio Nome do Pai, a manifestação de Sua autoridade e natureza. Yeshua não veio para estabelecer uma nova divindade, mas para revelar o Nome do Pai de forma completa e pessoal.

 

Quando Yeshua fala do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Ele não está introduzindo uma trindade de deuses, mas descrevendo a natureza da Sua própria missão:

 

- O Pai (Ha'Av): A fonte de toda autoridade, o Eterno, o Único Elohim de Israel.

- O Filho (Ha'Ben): O Messias, o Sh'liach de Elohim, que veio para cumprir a Sua vontade na terra e revelar o Seu Nome. Ele é o braço estendido do Pai.

- O Espírito Santo (Ruach HaKodesh): O poder de Elohim em ação. A Ruach HaKodesh é a presença ativa e imaterial de Elohim que guia, capacita e santifica. É o "sopro" de Elohim que nos dá vida, como descrito em Gênesis.

 

A ordem de Yeshua pode ser entendida como a delegação de autoridade para batizar sob o poder de YHWH, através da autoridade de Seu Messias (Yeshua), e pela capacitação de Seu Santo Espírito (Ruach HaKodesh). A unidade de HaShem (o Nome do Eterno) é mantida e afirmada. Não são três nomes, mas um único Nome manifestado em três aspectos funcionais da redenção humana.

 

"Ensinando-os a Guardar Todas as Coisas..."

 

A comissão não termina com o batismo, mas com o ensino. O objetivo final é criar talmidim (discípulos) que sejam obedientes à vontade de Elohim, assim como Yeshua era. A ênfase é na Torah, mas agora interpretada à luz do Messias. Yeshua reafirma essa ideia, escrevendo que a lei não foi abolida, mas que veio para cumpri-la integralmente (Mateus 5:17), e que aqueles que são "em Cristo" são chamados a viver uma vida de obediência aos Seus mandamentos.

 

Em suma, a Grande Comissão, quando vista através da lente do judaísmo, não é uma invenção de uma nova fé, mas a expansão da fé de Israel às nações. É um convite para que o mundo inteiro se torne talmidim do Messias, vivendo sob a autoridade do Único Elohim de Israel, em uma comunidade de renascimento espiritual e obediência.

 

É a visão profética de Israel se tornando uma "luz para as nações", não para substituí-las, mas para trazê-las de volta para o coração de YHWH.

 

Francisco Adriano Germano

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