No coração da Parashá Re'eh, em
meio às leis do ano de shemitah (o ano de "libertação" das
dívidas), reside um dos pilares mais significativos do judaísmo: o princípio da
tzedacá.
Se houver um pobre entre os
seus irmãos em qualquer uma das cidades da terra que YHWH, o seu Elohim lhe dá,
não endureça o coração nem seja mesquinho com ele. Ao contrário, seja generoso
e empreste-lhe generosamente o que lhe faltar, conforme a sua necessidade.
(Deuteronômio 15:7-8)
A tzedacá está no cerne da
compreensão judaica das mitzvot de bein adam le-chavero, os deveres
interpessoais. É uma ideia que, embora remonte a quatro mil anos, permanece
profundamente relevante e desafiadora. Para compreendê-la, é fundamental
mergulhar em sua origem e significado.
Tzedacá e Mishpat: O Caminho
de Elohim
O fundamento da tzedacá
encontra-se em um dos textos mais reveladores do judaísmo, em Bereishit
(Gênesis). Nele, a Torá explica a escolha de Abraão:
Pois eu o escolhi para que ele
dirija seus filhos e sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do
Senhor, praticando o que é reto e justo (tzedacá e mishpat).
(Gênesis 18:19)
Aqui, o "caminho do
Senhor" é definido por duas palavras: tzedacá e mishpat.
Ambas são formas de justiça, mas com lógicas distintas.
Mishpat é a justiça
retributiva, o Estado de Direito. É a lei que distingue o certo do errado,
estabelece regras para a convivência social e resolve disputas de forma
imparcial. A dignidade com que o judaísmo revestiu a lei é um testemunho de sua
importância. Para a fé judaica, Elohim se revela através das leis, pois a
redenção da sociedade — a manifestação da Presença Divina — depende de uma
ordem social justa.
Tzedacá é a justiça
distributiva. Ela complementa o mishpat, reconhecendo que uma sociedade
pode ser legalmente justa, mas socialmente desigual. Onde há fome, desemprego e
extrema pobreza ao lado de opulência, o mishpat não é suficiente. A
tzedacá assegura que os meios de existência, a riqueza como bênção de Elohim,
sejam compartilhados para que ninguém seja privado dos requisitos básicos de
uma vida digna.
A Tzedacá não é um mero
apêndice, mas uma força vital para a justiça social. A Torá detalhou seu
programa em uma economia predominantemente agrária, com leis sobre o
cancelamento de dívidas (shemitah), a libertação de escravos, o Jubileu
e o compartilhamento de colheitas com os necessitados. No entanto, a
genialidade da Torá reside em sua capacidade de transcender uma era específica.
Os versículos de Deuteronômio citados acima serviram de base para que os
rabinos aplicassem o princípio atemporal da tzedacá em todas as sociedades e
economias, incluindo a doação de dinheiro.
Tzedacá e a Perspectiva de
Yeshua e dos Apóstolos
O conceito de tzedacá é
intrinsecamente ligado aos ensinamentos de Yeshua e dos apóstolos, que
frequentemente ecoavam e expandiam essa compreensão de justiça e caridade.
Yeshua, ao ser questionado sobre
o maior mandamento, citou o amor a Elohim e o amor ao próximo como a base de
toda a Torá. Sua ênfase na compaixão e no cuidado com os marginalizados (Mateus
25:35-40) reflete a essência da tzedacá. Ele não apenas pregou, mas viveu essa
justiça distributiva, dedicando-se a curar os enfermos, alimentar os famintos e
acolher os pobres. A Parábola do Bom Samaritano, por exemplo, ilustra a tzedacá
em sua forma mais pura: um ato de compaixão espontâneo e incondicional que
transcende barreiras sociais e religiosas.
Os apóstolos também levaram
adiante este ideal. A comunidade apostólica, descrita em Atos dos Apóstolos
2:44-45, praticava uma forma de tzedacá radical:
Todos os que criam
mantinham-se unidos e tinham tudo em comum. Vendiam suas propriedades e seus
bens, e dividiam o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade.
Essa prática demonstra que o
cristianismo primitivo entendia a fé como um compromisso com a justiça
distributiva, onde a prosperidade material era um meio para sustentar a
comunidade e garantir que ninguém ficasse em necessidade.
Tzedacá: A Unidade Indissociável de Justiça e
Caridade
O termo tzedacá é
fundamentalmente intraduzível, pois une dois conceitos que, em outras línguas,
são vistos como opostos: justiça e caridade. Em sistemas legais
ocidentais, um ato de justiça é algo a que se tem direito, enquanto a caridade
é uma doação voluntária. Na visão judaica, no entanto, a tzedacá é ambos.
Essa compreensão única surge da
teologia de que tudo pertence a Elohim. O que possuímos é apenas um bem
confiado a nós. Não somos proprietários absolutos, mas guardiões. Sendo
assim, compartilhar nossos bens com os necessitados não é um ato de
benevolência opcional, mas uma exigência estrita da lei divina. O que seria "caridade"
em outros contextos, é uma forma de "justiça" no judaísmo,
pois estamos cumprindo a condição da tutela que nos foi dada por Elohim.
Além da Provisão Material: A
Dignidade Humana
A tzedacá não se limita a suprir
necessidades físicas, mas também as psicológicas. Os rabinos
interpretaram a ordem de "suprir as necessidades" de alguém
como a responsabilidade de protegê-lo da humilhação da pobreza. Isso incluía
não apenas provisão de alimento e moradia, mas também, se necessário, o que a
pessoa precisava para manter seu padrão de vida anterior e sua dignidade. O
relato de Hillel, o Velho, (Talmude de Jerusalém, Tratado Pe'ah 8:7) comprando
um cavalo e um escravo para um homem pobre e, em seguida, correndo ele mesmo à
sua frente para não o envergonhar, é a personificação dessa virtude.
A tzedacá também prioriza a independência.
Maimônides, em seu código legal, destaca que o grau mais elevado de tzedacá não
é dar, mas sim ajudar a pessoa a se tornar autossuficiente — seja por meio de
um presente, um empréstimo, ou ajudando-o a encontrar um emprego. O objetivo é
fortalecer a pessoa para que ela não precise mais de ajuda, rompendo o ciclo da
pobreza.
Essa ênfase na dignidade também
se manifesta na exigência rabínica de que mesmo um pobre deve dar tzedacá.
Embora pareça ilógico, a regra é uma profunda compreensão da condição humana: a
dignidade de dar é um componente essencial do ser humano. Ao permitir que o
necessitado também seja um doador, a tradição judaica restaura seu
autorrespeito, lembrando-o de que ele é digno e capaz.
Conclusão
A tzedacá é uma das
virtudes mais sublimes da Torá. Ela é a prova de que conhecer a Elohim é agir
com justiça e compaixão, é reconhecer Sua imagem em cada pessoa e ouvir o
clamor dos necessitados. É a união de justiça e caridade que sustenta não
apenas a comunidade, mas também a fé.
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