A crença na Terra plana, apesar
das esmagadoras evidências em contrário, continua a cativar uma pequena, mas
vocal, parcela da população. Este artigo busca desmistificar essa noção,
utilizando uma abordagem multifacetada que abrange a sabedoria da tradição
judaica, a clareza das Escrituras Sagradas, as incontestáveis descobertas da
ciência e, por fim, uma análise dos fatores psicológicos que perpetuam essa
crença.
A Perspectiva Judaica: Um
Universo Esférico e Infinito
A tradição judaica, com sua rica
tapeçaria de textos e interpretações, oferece uma visão de um universo complexo
e esférico, que se distancia radicalmente da concepção de uma Terra plana. As
fontes clássicas e medievais frequentemente descrevem os céus e a Terra como
esféricos, em harmonia com as observações astronômicas da época.
Maimônides (Rabino Moshe ben
Maimon), um dos maiores pensadores judeus da Idade Média, em sua obra "Mishneh
Torá", aborda a astronomia com um rigor intelectual impressionante,
descrevendo os corpos celestes em movimento esférico. Isso é notavelmente
evidenciado na seção Hilkhot Yesodei ha-Torah (Leis dos Fundamentos da Torá),
capítulo 3, onde ele discute a natureza dos corpos celestes e a ordem do
universo.
Ele se baseou no conhecimento
astronômico de sua época, que já reconhecia a esfericidade da Terra. Para
Maimônides, a ordem e a estrutura do universo refletiam a sabedoria divina, e
essa ordem era perfeitamente compatível com um modelo esférico do cosmos.
Ele argumenta ainda que o
conhecimento dos "cálculos das estrelas e as suas esferas" é
fundamental para a correta observância de mitzvot (mandamentos) como a
determinação das datas das festas e a oração.
Além disso, a Cabala, a
tradição mística judaica, descreve os mundos espirituais e físicos como
interconectados e, muitas vezes, faz uso de simbolismos que sugerem
esfericidade e ciclos contínuos, não superfícies planas limitadas.
Para se ter uma ideia, a
estrutura mais fundamental da cosmologia cabalística é a Árvore da Vida, ou Etz
Chayim, que consiste em dez sefirot (esferas). Essas sefirot são descritas como
emanações de Elohim ou "dimensões da realidade", por meio das
quais o Infinito (Ein Sof) se manifesta no mundo físico. A própria palavra
sefirot está etimologicamente relacionada à palavra hebraica para "esferas"
(sapirim), sugerindo uma estrutura cósmica esférica e multidimensional, não um
plano bidimensional.
Ou seja, a ideia de uma "Terra
plana" simplesmente não encontra eco nas profundas e sofisticadas
cosmologias desenvolvidas dentro do judaísmo ao longo dos milênios.
As Escrituras Sagradas:
Indícios de Uma Terra Esférica
Embora as Escrituras Hebraicas
não sejam um livro de ciência e não descrevam explicitamente a Terra como uma
esfera, diversas passagens, quando interpretadas em seu contexto original e com
uma mente aberta, sugerem uma visão que vai além de uma superfície plana.
Isaías 40:22 é
frequentemente citado:
"É ele quem está
assentado sobre o círculo da terra, cujos moradores são para ele como
gafanhotos; ele estende os céus como cortina e os desenrola como tenda para
neles habitar."
A palavra hebraica para
"círculo" é chug (חוּג),
que pode se referir a um círculo ou a uma esfera, dependendo do contexto. Dada
a impossibilidade de se ver um "círculo" do ponto de vista divino, a
interpretação de chug como "esfera" ou "globo"
faz mais sentido no contexto de uma visão elevada da Terra.
Outra passagem relevante é Jó
26:10:
"Marcou um limite sobre a
superfície das águas, na fronteira da luz e das trevas."
Esta descrição sugere uma linha
de terminador, a divisão entre a luz do dia e a escuridão da noite, que é
característica de um corpo esférico iluminado por uma fonte de luz distante (o
Sol). Em uma Terra plana, a transição seria repentinamente drástica e sem uma "fronteira"
definida como a observada em um nascer ou pôr do sol.
Essas passagens, embora não sejam
provas científicas diretas, demonstram que a Bíblia não está em contradição
com a ideia de uma Terra esférica, e em alguns casos, até mesmo a aponta
sutilmente.
A Ciência Incontestável: Uma
Montanha de Provas para a Esfericidade
A ciência moderna acumulou uma
quantidade avassaladora de evidências que refutam a teoria da Terra plana e
confirmam sua esfericidade. Desde a antiguidade, observações simples até as
complexas tecnologias espaciais, os fatos são inegáveis.
A Sombra da Terra na Lua: Durante
um eclipse lunar, a sombra da Terra projetada na Lua é sempre curva,
evidenciando o formato esférico do nosso planeta. Se a Terra fosse plana, sua
sombra seria uma linha reta ou um formato irregular, dependendo de como
estivesse orientada.
Navios no Horizonte: A
maneira como os navios desaparecem no horizonte, com o casco sumindo antes do
mastro, é uma prova clássica da curvatura da Terra. Em uma superfície plana, o
navio simplesmente diminuiria de tamanho até desaparecer.
Variação das Constelações:
A posição das constelações muda à medida que nos movemos para o norte ou para o
sul. No hemisfério sul, vemos constelações diferentes daquelas observadas no
hemisfério norte, um fenômeno inexplicável em uma Terra plana.
Viagens de Volta ao Mundo:
Aeronaves e navios são capazes de circum-navegar o globo, partindo de um ponto
e retornando a ele sem encontrar nenhuma "borda" ou obstáculo.
Imagens de Satélite e
Astronautas: Milhares de fotografias e vídeos da Terra tiradas do espaço,
por inúmeras agências espaciais de diferentes países (NASA, ESA, Roscosmos etc.),
e o testemunho de centenas de astronautas, mostram consistentemente uma Terra
esférica. "A Terra é redonda e deslumbrante, flutuando no espaço,"
disse Yuri Gagarin, o primeiro homem no espaço.
Fusos Horários: A
existência de fusos horários globais é uma consequência direta da rotação da
Terra esférica. Enquanto uma parte do globo está iluminada pelo Sol, a outra
está na escuridão, criando as diferenças de horário ao redor do mundo. Em uma
Terra plana, o Sol iluminaria toda a superfície de uma só vez, eliminando a
necessidade de fusos horários.
Os Argumentos Psicológicos:
Por Que a Crença Persiste?
A despeito da montanha de
evidências científicas e da ausência de apoio nas tradições antigas, a crença
na Terra plana persiste para alguns, impulsionada por uma série de fatores
psicológicos complexos:
Dissonância Cognitiva:
Indivíduos que se apegam a essa crença podem experimentar dissonância cognitiva
– o desconforto mental de ter duas ou mais ideias, crenças, valores ou emoções
contraditórias. Para reduzir essa dissonância, eles podem rejeitar evidências
que contradizem sua crença preexistente.
Viés de Confirmação:
Pessoas com essa crença tendem a buscar e interpretar informações de forma a
confirmar suas próprias preconcepções, ignorando ou desqualificando evidências
contrárias. Eles consomem conteúdo de "Terra plana" e veem isso como
prova, enquanto descartam a ciência como "propaganda".
Desconfiança em Autoridades e
Teorias da Conspiração: A crença na Terra plana muitas vezes se enquadra em
um espectro maior de desconfiança em relação a instituições governamentais,
científicas e educacionais. A ideia de que "eles" estão escondendo a
verdade é um pilar central desse movimento. Essa mentalidade de conspiração
oferece um senso de pertencimento e de ser parte de um grupo
"iluminado" que vê através das mentiras da sociedade.
Necessidade de Exclusividade e
Identidade: Para alguns, abraçar uma crença minoritária e
"revolucionária" pode oferecer um senso de identidade única e de ser
especial. Ser parte de um grupo que "sabe a verdade" em um mundo de
"ovelhas" pode ser psicologicamente gratificante.
Falta de Educação Científica
Crítica: A ausência de uma base sólida em pensamento científico e ceticismo
saudável pode levar à aceitação de argumentos falhos e pseudocientíficos. A
capacidade de avaliar criticamente as fontes de informação e distinguir entre
evidências e meras afirmações é crucial.
Medo do Desconhecido ou do
Complexo: O universo é vasto e complexo. Para alguns, a simplicidade
aparente de uma Terra plana pode ser mais reconfortante do que a complexidade
de um universo esférico em expansão.
Conclusão
A ideia de uma Terra plana é um
mito que não encontra respaldo na tradição judaica, nas Escrituras Sagradas, e
é categoricamente refutada pela ciência moderna. As evidências são claras e a
vasta maioria da humanidade, por séculos, compreende a esfericidade de nosso
planeta. A persistência dessa crença em alguns indivíduos é um fenômeno
complexo, enraizado em vieses cognitivos e na desconfiança generalizada, em vez
de em fatos ou na lógica.
É imperativo que continuemos a
promover a educação científica, o pensamento crítico e a valorização das fontes
de conhecimento confiáveis para que a verdade prevaleça sobre a desinformação e
os equívocos. A Terra não é apenas redonda; ela é uma maravilha de um universo
vasto e belo, esperando ser explorada e compreendida em toda a sua
complexidade.
Francisco Adriano Germano

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